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05/05/2003 - 10h05

Estudo liga expansão de idiomas a invenções da agricultura

REINALDO JOSÉ LOPES
da Folha de S.Paulo

À exceção de um punhado de idiomas isolados, nenhuma língua da Terra parece remontar suas origens a mais de 10 mil anos atrás. Do ponto de vista temporal, são ondas que mal começaram a quebrar num mar linguístico dezenas de milhares de anos mais velho.

Em quase todas as regiões do planeta, um impulso irresistível parece tê-las levado à posição de domínio que detêm hoje, apagando os idiomas que as precederam. Para arqueólogos, está cada vez mais claro que essa expansão não foi decidida pela cruz ou pela espada, mas pelo arado -o poder demográfico e econômico trazido pela invenção da agricultura.

Os avanços para correlacionar a vitória dos grandes grupos linguísticos com a expansão agrícola, bem como as lacunas nessa teoria que ainda precisam ser preenchidas, acabam de ser mapeados num estudo publicado pela revista norte-americana "Science" (www.sciencemag.org).

O desafio, afirmam seus autores, é conjugar com sucesso os indícios oferecidos por esqueletos, genes e artefatos para provar a vitória das famílias de idiomas dos primeiros agricultores da Terra.

Parece um objetivo ambicioso, mas não é nada menos do que se espera do fisiologista Jared Diamond, da Universidade de Califórnia em Los Angeles.

Autor do best-seller "Armas, Germes e Aço ", de 1997, Diamond chamou para si a responsabilidade de fazer com que a história humana deixe de parecer "um maldito fato depois do outro", como costuma dizer, e passe a revelar padrões que expliquem o sucesso de alguns povos e a derrota de outros.

Junto com o arqueólogo Peter Bellwood, da Universidade Nacional Australiana, Diamond assina o estudo na "Science". A chave do problema, para a dupla, é uma verdadeira vantagem evolutiva concedida aos povos que fizeram da agricultura a base do seu modo de vida.

Em todos os lugares onde o cultivo da terra era viável, afirmam, o modo de vida caçador-coletor (o único conhecido pelo Homo sapiens por pelo menos 100 mil anos) não tinha como competir com o das culturas agrícolas.

Não é impossível que alguns dos caçadores primordiais tenham conseguido se converter em fazendeiros, mas na imensa maioria dos casos a transição agrícola implicou a substituição física e cultural deles, por extermínio (mais raramente) ou miscigenação.

No Velho Mundo, esse processo teria começado na aurora do Holoceno, há cerca de 10 mil anos, quando o clima e os ecossistemas da Terra ganharam a feição que a humanidade conhece até hoje. A mais poderosa arma dos agricultores, para a dupla, foi a capacidade de produzir filhos num ritmo jamais sonhado pelos caçadores.

Com a comida garantida (ao menos nos anos de clima regular) fornecida pelas lavouras e a possibilidade de levar vida sedentária, estima-se que cada mulher tenha passado a ter, em média, um filho por ano -caçadores-coletores modernos precisam de ao menos quatro anos de intervalo entre cada criança, porque não podem se dar ao luxo de carregar vários filhos pequenos em expedições nômades em busca de alimento.

"A fertilidade deles, eu acho, deve ter sido muito maior", disse Bellwood à Folha. "Esqueletos do Neolítico [período entre o início da agricultura e o domínio dos metais] mostram que eles tinham montes de filhos", afirma o arqueólogo.

Mais filhos geravam uma necessidade maior de espaço para vilas e lavouras -e uma vocação para o expansionismo. "Não é uma decisão consciente", explica o arqueólogo Eduardo Góes Neves, do MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia) da USP.

"No espaço de uma geração, o sujeito simplesmente nota que tem cinco filhos e que precisa abrir uma nova roça para poder alimentá-los. Temos de pensar no efeito de longa duração que isso tem", afirma. Um subproduto inesperado da nova sociedade agropastoril foi o aparecimento das grandes doenças infecciosas -varíola, gripe, tuberculose e sarampo, só para citar as mais óbvias.

Duas coisas unem todos esses males, os maiores assassinos da humanidade até o fim do século 19: surgem, muito provavelmente, a partir de doenças comuns em animais domésticos, e só conseguem sua sombria eficácia de transmissão quando há densidade populacional humana para ajudá-los. Em outras palavras, são doenças de sociedades populosas e criadoras de animais.

Dito dessa forma, parece que os fazendeiros tinham uma desvantagem fatal, mas a convivência de longo prazo com os micróbios causadores das "doenças de multidão" significou, na prática, que os sobreviventes passaram a ter alguma forma de imunidade contra eles.

O mesmo não vale, contudo, para os caçadores que eles encontraram pelo caminho, os quais nunca tinham encontrado patógenos do tipo pela frente e provavelmente tinham mais a temer dessa transmissão do que de qualquer tipo convencional de guerra. A vitória dos produtores de alimentos, como os chama Diamond, teria sido mera questão de matemática.

Difícil correlação

Ninguém duvida da lógica interna da explicação, mas o difícil, em diversos casos, é provar que a diáspora agrícola e a diáspora linguística são a mesma coisa. "Quem faz uma escavação não recupera a língua, mas a cultura material e os esqueletos", afirma Neves, resumindo o problema que os adeptos desse modelo enfrentam.

"Ele é interessante, mas funciona melhor para alguns casos do que para outros." Bellwood e Diamond têm consciência disso, e um dos papéis de seu estudo é mostrar onde a teoria funciona e onde a evidência faz dela uma hipótese atraente entre muitas. A campeã, para a dupla, é a chamada expansão banta, que deu à população da África ao sul do Saara a configuração que retém até hoje.

Por volta do ano 2000 a.C., povos do leste da Nigéria e do oeste de Camarões domesticaram plantas tropicais como o sorgo e o feijão-de-corda e se expandiram para o leste e para o sul, levando consigo versões arcaicas das chamadas línguas bantas.

Hoje, esses idiomas são falados por quase toda a população da África subsaariana, à exceção de algumas dezenas de milhares de nativos khoisan no extremo sul do continente e em outras áreas isoladas -esse povo, com seu idiossincrático idioma cheio de cliques ou estalidos, é um dos possíveis falantes de línguas com mais de 10 mil anos.

No caso da expansão banta, tudo se encaixa perfeitamente: as análises genéticas mostram que o oeste africano estava exportando populações a granel, e a maior diversidade de línguas do grupo ao qual os idiomas bantos pertencem, o nigero-congolês, está concentrada na região de origem da expansão.

Em geral, isso quer dizer que o grupo linguístico está ali há mais séculos, porque teve tempo de se diversificar -o que não acontece com as línguas bantas fora da região, todas muito mais parecidas entre si, indicando uma origem comum e recente.

Outro exemplo que fortalece a idéia da expansão casada entre língua e agricultura, para Diamond e Bellwood, vem da América do Sul: a expansão aruaque, que teria saído por volta de 400 a.C. do sudoeste amazônico para o Caribe. "Essa é uma idéia muito antiga, que relaciona especificamente a domesticação da mandioca em algum lugar da região amazônica com a expansão deles", diz Neves.

A dupla de pesquisadores, contudo, simplifica um pouco o quadro americano. Para eles, a agricultura do continente não tem mais de 4.000 anos, embora pesquisas recentes, como a da paleobotânica americana Dolores Piperno, do Instituto Smithsonian do Panamá, indiquem que ela pode ter cerca de 10 mil anos -tornando-a, portanto, quase tão antiga quanto a revolução agrícola no Oriente Médio.

Um grau similar de coerência parece ser obtido na expansão sino-tibetana (a que deu origem aos atuais chineses) e austronésia, uma das especialidades de Bellwood. Esse último caso, que abrange a Indonésia, parte da Nova Guiné e a Polinésia, é particularmente fácil de traçar porque vários dos lugares colonizados, no meio do Pacífico, não tinham populações humanas antes.

Mistério indo-europeu

Por ironia, contudo, o episódio de expansão linguística mais estudado há dois séculos continua desafiando os pesquisadores. Trata-se da família indo-européia, que ia desde o oeste chinês até a Irlanda e reúne quase todas as línguas européias, inclusive o português.

Nem Bellwood e Diamond se entendem sobre a origem do grupo: "Jared ainda espera a confirmação de uma origem na Ucrânia, há 6.000 anos, mas eu duvido. Para mim [o indo-europeu veio" da Anatólia há 8.500 anos", diz Bellwood.

Apóiam essa hipótese, em parte, os dados genéticos, que mostram que variantes de genes típicas do Oriente Médio estão presentes em grandes frequências no leste e no centro da Europa, diminuindo conforme se vai para o oeste. Como a expansão se deu passo a passo, ao longo de milhares de anos, tal diluição seria de esperar.

Para Bellwood, tais expansões não podem ser explicadas com base na simples troca de uma língua por outra. "A mudança linguística é muito comum, mas as grandes famílias de línguas se espalharam tanto que elas simplesmente não podem ser explicadas desse jeito. Uma explicação como essa para o indo-europeu teria de carregar a língua de sua região de origem para lugares tão distantes quanto a Islândia e Bangladesh!"

"Vejo a hipótese da agricultura/língua como uma sugestão explanatória global para um aspecto muito importante da história humana", pondera o australiano. "Mas não como uma fórmula que tem de funcionar em todos os lugares e todas as circunstâncias."
 

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