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26/05/2003 - 07h48

Buraco de tatu põe sítio arqueológico de pernas para o ar

CLAUDIO ANGELO
Editor-assistente de Ciência da Folha de S.Paulo

Um espectro ronda a arqueologia: o tatu. Também ele um escavador, o animal pode bagunçar sítios inteiros, misturando objetos de idades diferentes entre várias camadas de solo, confundindo suas datações (que se pautam pela regra geral de que um objeto é tanto mais antigo quanto mais profundo ele estiver enterrado). Uma dupla de brasileiros acaba de tapar esse buraco.

Embora os cientistas já tivessem noção do problema, o real poder de estrago dos tatus até agora não tinha sido objeto de escrutínio científico. Num curioso experimento de laboratório -coisa rara em arqueologia, uma ciência que costuma ser praticada em campo-, Astolfo Araújo, do Instituto de Biociências da USP, e José Carlos Marcelino, do Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo, construíram um sítio arqueológico artificial e observaram a ação de um tatu por 50 dias.

Os pesquisadores perceberam que, ao cavar seus buracos, o animal deslocou artefatos para cima e para baixo. Alguns deles acabaram indo parar até meio metro abaixo de sua posição original.

A perturbação pode ser um problema para os arqueólogos, porque a distribuição dos vestígios num sítio acontece em camadas: objetos num mesmo nível costumam ter a mesma idade. Dependendo da taxa de acumulação de sedimentos em diferentes tipos de terreno, um deslocamento de meio metro para cima ou para baixo pode significar uma viagem no tempo de 500 a 5.000 anos para o objeto. E um erro de interpretação para o pesquisador.

"Ele pode ser enganado de várias maneiras. Pode dizer: "Encontrei uma ponta de flecha do tipo tal a tantos metros de profundidade" e sair alardeando isso como uma grande descoberta quando, na verdade, é o resultado de perturbação no sítio", afirmou Araújo à Folha.

Terra misteriosa

O pesquisador, que é formado em geologia -uma ciência exata- e obcecado pela precisão em arqueologia -uma ciência humana-, diz que começou a se preocupar com esse tipo de enganação nos anos 90, quando participou de suas primeiras escavações.

"Observei que alguns sítios estavam enterrados, mesmo estando no topo de uma colina. Os arqueólogos não sabiam explicar de onde vinha a terra", disse.

Passou a estudar fenômenos de bioturbação, ou perturbação de sítios por animais, e se espantou com a falta de informações sobre a ação dos tatus.

No experimento, realizado há seis anos e só publicado neste mês, na revista científica "Geoarchaeology" (www.interscience.wiley.com/
jpages/0883-6353/
), Araújo e Marcelino enterraram milhares de pedras lascadas e cacos de cerâmica em quatro camadas bem definidas num cercado de 5 m x 4 m no zoológico de São Paulo. As peças de cada camada foram pintadas de cores diferentes, para facilitar a identificação.

"Foi um trabalho insano", recorda-se o arqueólogo. "Passamos tardes inteiras esmerilhando os gumes das lascas de pedra, porque o bicho podia se cortar."

Depois de preparado o "sítio", um tatu-peba (Euphractus sexicintus) foi solto no cercado. O animal é conhecido como tatu-de-cemitério, pela fama que lhe é atribuída de escavar nesses locais -mais uma razão para os arqueólogos desconfiarem dele.

Uma escavação no sítio artificial depois de 50 dias revelou o estrago feito pelo animal nas camadas de artefatos, que estavam completamente reviradas. "Essa maçaroca é o que você teria com muito tempo passando e vários tatus em ação", disse Araújo.

Outro bom indicador da ação dos tatus é a rotação das peças. Em vez de estarem todos deitados, como seria natural na formação de um sítio arqueológico, alguns cacos foram descobertos enterrados em pé. "Isso mostra que alguma coisa aconteceu."

Premissa de Pompéia

"O trabalho é interessante, porque em climas tropicais a gente trabalha com uma série de fatores que afetam o sítio após a deposição. Esse trabalho dá parâmetros para a gente", disse o arqueólogo Eduardo Góes Neves, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, que coordena um projeto de escavações no Amazonas.

Ao mesmo tempo, Neves é cético quanto ao potencial de agentes bioturbadores de destruir carreiras acadêmicas. "Um arqueólogo experiente não se engana."

Neves diz que ele mesmo tem sofrido com algo que pode ser uma perturbação nos sítios que estuda, mas que provavelmente foi causada por seres microscópicos. "A gente encontra amostras de carvão com datações diferentes no mesmo nível."
 

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