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28/07/2003 - 09h00

Big Bang é o "mito científico da Criação", diz físico carioca

SALVADOR NOGUEIRA
da Folha de S.Paulo, no Rio

Se você acha que tem uma idéia razoável de como surgiu o Universo, é bom checar de onde vieram suas certezas. "O Big Bang é o mito científico da Criação", diz o carioca Mário Novello, um dos mais respeitados físicos do país.

Para ele, o problema da origem do Universo está longe de ser resolvido, e a aceitação rápida do modelo que sugere um ponto determinado no passado para o início de tudo é muito mais fruto de um pensamento ideológico do que de embasamento científico.

Embora admita que o Big Bang, que determina que o Universo começou numa grande explosão, foi fundamental para sedimentar a cosmologia como "ciência séria", ele acha que agora já é hora de transcender o velho modelo.

Apesar de apostar em novidades surpreendentes na ciência do século 21, Novello acredita que nenhuma das teorias "de tudo", que se propõem a unificar as forças da natureza e resolver todos os problemas do mundo físico, irão cumprir o que prometeram. Para ele, a variabilidade do mundo é inesgotável, e nenhuma teoria vai ser capaz de abarcar tudo que há lá fora de forma definitiva.

Num tempo de muitas críticas ao governo Lula, Novello elogia o novo MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia). Ele acha que o governo anterior se perdeu um pouco na priorização do aspecto "inovação" e acabou mexendo nos lugares errados para estimular a ciência aplicada.

Leia a seguir trechos da entrevista concedida à Folha de S.Paulo da sala no pesquisador, no CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas), no Rio de Janeiro.

Folha - A cosmologia sempre foi uma área do conhecimento de difícil aceitação no meio científico. Isso já mudou?
Mário Novello - Foi um problema da comunidade aceitar a cosmologia. Na verdade, essa aceitação só veio de fora. Quando eu cheguei aqui em 1972, vindo de meu pós-doutorado em Oxford, quando me voltei diretamente para a cosmologia, fui tratado durante praticamente uma década como sendo uma pessoa que fazia metafísica. Era algo que não tinha nada a ver. Nesse mesmo momento, nos anos 80, estava acontecendo uma revolução fantástica no mundo inteiro, e a gente perdeu a chance de fazer uma coisa grande. Agora talvez tenhamos uma segunda chance.

Folha - Por falar em idéias pré-concebidas na cosmologia, o sr. acabou de fazer uma palestra apresentando modelos alternativos à hipótese do Big Bang...
Novello - Eu demonstrei um cenário possível. Como nós não temos nenhuma observação que confirme se houve ou não uma fase anterior ao Big Bang, você examina várias possibilidades. Não é absurdo imaginar que, quando nós refinarmos mais nossas medidas observacionais, você já possa vislumbrar por onde a gente poderia, embora não vendo diretamente, separar os modelos compatíveis com as flutuações que deram origem ao que a gente observa hoje.

Folha - Embora o sr. critique a teoria do Big Bang, ela foi fundamental para fortalecer a cosmologia enquanto ciência, não?
Novello - É verdade. Não chega a ser a mesma coisa que aconteceu com o [Joseph] Weber [físico da Universidade de Maryland, EUA], com as ondas gravitacionais. O Weber foi um pouco exagerado nisso, ele anunciou que tinha descoberto e medido as ondas gravitacionais [em 1960]. Na época, foi um escândalo. Ele nunca publicou o que seriam os dados. Consequência disso é que nos EUA, na Europa e no Japão passaram a construir instrumentos de ondas gravitacionais, e a área teve um "boom".

Não é a mesma coisa que o Big Bang, porque ele é um modelo que existe desde 1917, e a descoberta crucial foi em 1929. Em 1964, foi a confirmação de que aquilo que o [astrônomo americano Edwin] Hubble mediu era uma expansão. Então, na verdade, desde 1929 podia-se imaginar esse "boom" da cosmologia. Não aconteceu. Em 1964, também podia acontecer. Não aconteceu. Eu acho que o momento da virada na crença de que o Big Bang podia ser identificado com uma singularidade verdadeira foi com os teoremas de [matemático britânico Roger] Penrose. Aí, baseado nisso, surgiu o famoso livro de Steven Weinberg, "Os Três Primeiros Minutos". O Weinberg não fez nada nessa área, nada. Mas ele disse assim para a comunidade científica: "olha, esse pessoal está correto".

Folha - Nesse contexto, por que o Big Bang se tornou tão forte?
Novello - A razão principal é ideológica. Não vejo razão nenhuma. No fundo, se você olhar para os teoremas da singularidade, quaisquer que sejam eles, você vê que algumas condições dos teoremas são razoáveis para serem aceitas, e outras não. Por exemplo, uma delas é que existe um tempo global no mundo. Isso quer dizer o seguinte: não há caminhos que levam ao passado. A maioria dos físicos aceita a idéia de que exista um tempo global.

Folha - O sr. acha que parte dessas convicções ideológicas tem a ver com o fato de que parece ser mais fácil conciliar um Universo com um início definido com as convicções religiosas de cada um?
Novello - Veja você, a cosmologia começou exatamente dessa maneira desagradável. Quando o Einstein pegou as equações dele, a primeira coisa que ele fez foi aplicá-las ao Universo. E ele tinha idéias pré-concebidas sobre o que deveria ser um modelo de Universo. E disse que tinha de ser estático e tinha de ser finito --essas eram as condições. Ele não conseguia fazê-lo dentro das equações anteriores dele, que satisfaziam ao sistema planetário de uma maneira brilhante.

Aí, ele optou por modificar as equações, para botar um modelo cosmológico que era uma ideologia que havia na cabeça dele. A mesma coisa acontece aqui. Se é uma questão religiosa ou simplesmente estética, não sei. Eu não vejo problemas de conciliar o Universo com um começo singular ou um Universo eterno com o aspecto religioso, porque a religião não tem nada a ver com isso. Na verdade, você colocar Deus num ponto t [tempo] igual a zero ou t igual a menos infinito, qual diferença faz? De toda essa história, há a seguinte moral: o Big Bang é simples, tranquiliza e acabou o problema. Sai do Big Bang, você entra em alternativas e não sabe qual é a verdadeira.

Folha - E por que o sr. acha que a idéia do Big Bang caiu tão fácil no gosto popular?
Novello - O problema é que o Big Bang veio no momento necessário para que a cosmologia crescesse, foi esse o momento. Como passou para a mídia, de um certo modo, a mídia ficou muito contente de perceber que a cosmologia é uma atividade que eles entendem, porque o problema maior da cosmologia, qual é? Qual é a origem do Universo. E isso é algo que todos nós gostaríamos de saber. Não é à toa que todas as religiões começam com uma gênese, com uma cosmogonia. O que os cientistas fizeram foi criar um mito científico da Criação. Isso foi o Big Bang nos anos 1980 até o final dos 1990.

Folha - Mas os modelos alternativos ao Big Bang também não têm esse viés, esse problema de serem inverificáveis?
Novello - O problema é que na verdade você não pode esconder o tempo todo uma teoria. Quando você faz uma teoria de coisas que em princípio você não observa, você a coloca no mercado. Agora, o que vai acontecer é que todo mundo vai tirar as consequências dela. Então, se você fez uma hipótese esdrúxula, ela vai ter consequências futuras, que vão chegar até nós, e essas consequências nós podemos destruir por uma observação trivial. Então, na verdade, a gente está fazendo o jogo da ciência. Nós ainda não chegamos ao ponto de eliminar todas, mas muitas teorias já foram eliminadas.

Folha - Alguns dos principais proponentes dos modelos mais fortes do Big Bang hoje, como Paul Steinhardt, agora estão se voltando para modelos alternativos de Universo eterno, inclusive adicionando variáveis antes desconhecidas como as da energia escura.
Novello - Num artigo meu dos anos 80, com quatro autores, a gente cria um cenário no qual você tem matéria escura [a matéria do Universo que não pode ser observada]. A gente parou com isso por um tempo, mas vamos voltar a isso por causa desses concorrentes que apareceram no mercado. Mas é o que estou dizendo, hoje em dia, a idéia de um Big Bang, há poucos bilhões de anos, definitivo e assunto encerrado, já não é mais aquela imagem mental, e isso é importante, porque o grande público não tem conhecimento disso. E isso é importante porque isso vai mexer, aí sim, no aspecto religioso. Isso é visto pelo grande público não como a gente está vendo, com o olhar de um cientista, mas é visto sob um olhar de alguém que passa no máximo alguns momentos da vida pensando nesse problema do Universo por um certo enfoque religioso.

Folha - A física um dia atingirá um estado de completude, haverá uma "teoria de tudo", como advogam muitos cientistas?
Novello - Eu acredito na inesgotabilidade da natureza. Sempre que a gente bateu em alguma coisa assim como sendo um final na história da física, essa história na verdade teve um momento de virada e mudou radicalmente um cenário. Nada tão fantástico como no começo do século, com a relatividade e a mecânica quântica, mas houve pequenas coisas que aconteceram ao longo do século 20 que também foram mudanças, não tão dramáticas, mas mudanças. Nós estamos chegando a um ponto em que há um número crítico de cientistas, então as coisas são muito rápidas, e tudo isso está tendo consequências, e a gente está perdendo a possibilidade de fazer uma integração de tudo --isso sim a gente não está sabendo como vencer. Algumas pessoas acham que o tempo de Einstein já acabou, é como quem diz, "Ah, o Garrincha hoje em dia não jogaria mais o que ele jogou, o esquema é diferente". No caso da relatividade, das grandes sínteses que a gente teve no começo do século 20, talvez a gente esteja realmente numa crise. Nós não sabemos até hoje, por exemplo, por que a massa das partículas é o que é.

Folha - Falando de cosmologia no Brasil, o pessoal no CBPF parece bastante animado com a criação do Icra-BR (Instituto Nacional de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica). É o caso de comemorar?
Novello - O Icra-BR é [o braço de] uma rede internacional que existe em vários lugares do mundo. E a idéia de você juntar um grupo de teóricos é nova, porque a própria atividade teórica é muito individual. Só que, nos dias de hoje, a área de cosmologia e astrofísica é totalmente diferente, porque os problemas são de uma tal amplitude, envolvem cientistas de tantas áreas, que se você realmente quer montar um cenário do Universo, você tem que realmente começar a apelar para diferentes setores. No Icra-BR, você vai ter um número pequeno de pessoas que são permanentes e um número grande de visitantes, então o fluxo de pessoas será muito grande. Se funcionar do jeito que a gente pretende, vai ser realmente um ponto de referência para o Brasil e para a América Latina.

Folha - O sr. acha que no governo passado a inovação tecnológica foi enfatizada demais, em detrimento da pesquisa básica?
Novello - Você tocou no ponto certo. Claro que nós precisamos desenvolver tecnologia, e o investimento das indústrias brasileiras em pesquisa é quase ridiculamente pequeno. Mas isso é um problema que você não vai resolver no CBPF, entende? O que a gente faz é produzir pessoas competentes, e a maior parte vai para outros lugares. É preciso criar esses lugares lá nas indústrias, então tem de desenvolver lá, mas tem de continuar a ter o pessoal daqui, de alto nível, para que seja lá utilizado.
 

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