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27/07/2003 - 09h45

Para físico, viagem no tempo depende de matéria exótica

SALVADOR NOGUEIRA
da Folha de S.Paulo

Em meados dos anos 1980, Carl Sagan precisava que a protagonista do romance que ele estava escrevendo, Eleanor Arroway, chegasse até a estrela Vega e voltasse numa fração de segundo. Pelas leis da física, essa viagem levaria no mínimo 52 anos, uma vez que, segundo a teoria da relatividade, nada pode superar a velocidade da luz no vácuo, 300 mil quilômetros por segundo.

O astrônomo e escritor americano estava com problemas. Então ligou para um amigo, o físico Kip Thorne, e perguntou se havia algum meio de driblar as imposições relativísticas e ainda assim manter o livro cientificamente plausível. Thorne matutou um pouco e ofereceu uma sugestão. Em 1985, "Contato" chegava às livrarias, e Arroway atravessava 26 anos-luz num piscar de olhos, zunindo por um fenômeno chamado "buraco de verme". Três anos depois, Thorne e seu colega Michael Morris publicavam um estudo na revista científica "American Journal of Physics", sugerindo que os tais buracos de verme, em princípio, poderiam ser usados como atalhos entre dois pontos distantes espaço por hipotéticos viajantes do espaço-tempo.

"Antes do artigo de Kip Thorne, os buracos de verme eram geralmente vistos como patologias a serem evitadas --e geralmente letais para quem quer que tentasse usá-los", diz Matt Visser, um pesquisador que trabalha hoje na Universidade Victoria, na Nova Zelândia, tentando tornar a idéia dessas pontes cósmicas um pouco mais palatável aos físicos. Ele acaba de produzir um avanço impressionante nesse sentido, mostrando que é preciso pouca matéria exótica para manter um buraco de verme aberto para poder ser atravessado.

Não espere deglutir essa afirmação automaticamente --é complicado mesmo, e muitos cientistas nem sequer cogitam a hipótese de que esse fenômeno exista. Um buraco de verme, assim como seus primos mais famosos (e reais), os buracos negros, é um produto direto das equações da relatividade. A teoria de Albert Einstein sugere que a presença de matéria e energia em um dado local produz uma curva na geometria do espaço e do tempo, encurtando-os ou esticando-os. Essa curvatura existe numa quarta dimensão, que não se pode observar diretamente, mas que pode ser inferida por meio de cálculos matemáticos.

Mas é possível imaginar como funcionam os conceitos mais radicais da relatividade, como os buracos negros e os buracos de verme, imaginando o espaço-tempo quadridimensional como uma estrutura comum, tridimensional. Tome, por exemplo, uma folha de borracha plana. Se alguém coloca uma bola de ferro no meio dessa folha, verá que a presença da esfera gera uma curvatura na borracha. Se essa bola for muito, muito pesada, ela pode causar um rasgo na folha --um rombo no espaço-tempo. Uma formiga andando nesse "universo" plano de repente entra nesse rasgo e não consegue mais sair. Ela caiu num buraco negro. Agora, imagine que a folha esteja originalmente curvada em forma de um "U" deitado. Quando a primeira bola, mais leve, é colocada na parte de cima da borracha, subitamente se vê esse pedaço do espaço-tempo se conectando com outra região distante da folha, localizada do outro lado. Uma formiga querendo ir de uma ponta a outra normalmente deveria atravessar todo o gigantesco percurso em forma de U, mas, agora, com aquela deformação, ela pode chegar muito mais rápido indo até a base da esfera e saindo do outro lado da folha. Esse atalho é um buraco de verme, e, embora sua existência tridimensional pareça estar de acordo com o bom senso, o quadro muda drasticamente quando se salta da analogia para a realidade quadridimensional.

Matéria esdrúxula

Para começar, num ambiente real, no espaço, as equações dizem que manter um buraco de verme aberto exige grande quantidade de alguma coisa cujo balanço energético final seja negativo --algo que nunca foi observado antes, exceto em pequenas flutuações em escala quântica, e que viola uma coleção de princípios físicos.

A substância capaz de oferecer essa energia negativa é chamada pelos cientistas de "matéria exótica" --basicamente, o "pó-de-pirlimpimpim" dos buracos de verme. O novo estudo de Visser mostra que é possível, em teoria, manter um buraco de verme aberto com uma quantidade arbitrariamente pequena de matéria exótica --com um patamar de energia negativa que parece não violar as leis da física, uma vez que já é observado em certas circunstâncias no vácuo espacial.

Ao contrário do que se costuma pensar, o "vazio" é cheio de coisas estranhas. "É engraçado, porque todo mundo costuma ver o vácuo, o nada, como a coisa mais simples que pode existir, e os cientistas estão vendo agora que o vácuo, na verdade, é um sistema muito complexo", diz o físico Luiz Davidovich, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Partículas aparecem e desaparecem sem deixar vestígios, e esses fenômenos produzem balanços energéticos negativos, ainda que ínfimos. Para Visser, pode ser o bastante. "Um dos obstáculos para conseguir um buraco de verme é a necessidade de grande quantidade de matéria exótica que se pensava ser necessária", diz Mário Novello, pesquisador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. "Nesse artigo, eles mostram que essa certeza da comunidade científica estava errada."

Visser escreveu o artigo em colaboração com Sayan Kar, do Instituto Indiano de Tecnologia, e Naresh Dadhich, do Centro para Astronomia e Astrofísica Interuniversidade, na Índia. Os resultados do estudo do trio saíram na revista científica "Physical Review Letters" (prl.aps.org).

"Os resultados do estudo mencionado são bem interessantes", diz Serguei Krasnikov, físico do Observatório Astronômico Central em Pulkovo, Rússia, um dos pesquisadores que estudam a fundo a possível existência de buracos de verme. "Mas ele não faz muito para nos convencer a acreditar em buracos de verme."

Visser e seus colegas de fato resolveram um dos problemas reais na confecção de fenômenos como esse, mas não o único. "Uma vez superado esse obstáculo, outros persistem --e são altamente relevantes", exclama Novello. "Dentre esses, o mais importante é que, como um objeto de astrofísica, o buraco de verme deveria ser o produto final do colapso gravitacional de algum corpo celeste. Não há nenhuma evidência de que o colapso gravitacional possa conduzir à aparição de um buraco de verme." Essa é uma distinção entre esses fenômenos e os buracos negros, cuja existência é garantida pelo colapso de estrelas muito maciças, capazes de realmente produzir um rombo no espaço-tempo.

Experimento

Uma forma de estudar a questão é tentar produzir um buraco de verme em laboratório e ver se ele funciona. Isso evidentemente é impossível se a idéia for criar a coisa real, mas talvez seja viável a produção de uma versão análoga, eletromagnética, do fenômeno, que funcione apenas para fótons (partículas de luz).

Novello trabalha há anos na criação de análogos eletromagnéticos de fenômenos gravitacionais e, entre seus estudos publicados, ele tem um que sugere a produção de um buraco de verme portátil para fótons. Como prova de princípio, poderia ser interessante, mas Visser tem dúvidas sobre a utilidade do processo. "Não estou certo de que seria tão interessante", diz. "Mesmo que você tenha um modelo análogo de um buraco de verme, para que você o usaria? Um modelo análogo de um buraco negro pelo menos poderia ser usado para explorar a física do horizonte de eventos [a periferia do buraco negro, onde se pode observar a matéria sendo tragada]. Um modelo análogo de um buraco de verme teria uma garganta sem um horizonte de eventos, e não estou certo de que seria útil para muita coisa."

Máquina do tempo

A perspectiva de usar um buraco de verme para fazer uma viagem rápida por distâncias astronômicas é tão atraente que mais gente além de Carl Sagan já usou a premissa na ficção científica --numa das séries de "Jornada nas Estrelas", por exemplo, há uma estação espacial que fica na beira de um buraco de verme que permite o envio de naves ao outro lado da Via Láctea.

Em mundos imaginários, esses túneis cósmicos são excelentes soluções para o vôo interestelar. Mas, na realidade da relatividade, eles servem para mais que isso. Num universo quadridimensional que trata indistintamente espaço e tempo, é possível conceber buracos de verme que não só liguem regiões diferentes do cosmos, mas também épocas diferentes. E a idéia de uma máquina do tempo é tão problemática que muita gente prefere nem pensar em sua existência.

O problema é vulgarmente apresentado pelo "paradoxo do avô". Um sujeito volta no tempo e mata o próprio avô, impedindo então que ele tenha um filho que no futuro viria a ser seu pai e, por tabela, eliminando o próprio matador. Com isso, ele não pode voltar ao passado para matar o avô, que continua vivo e tem o filho que tem o neto que volta ao passado para matar o avô, que não tem o filho, que não tem o neto e assim sucessivamente, eternidade afora. Em essência, muitos físicos exigem que, para que o mundo faça sentido, a viagem no tempo deve ser necessariamente impossível --o que restringe um bocado a possibilidade de os buracos de verme existirem de fato.

Sintetizando esse pensamento de boa parte da comunidade científica, o físico britânico Stephen Hawking criou o que ele chama de "Conjectura de Proteção Cronológica", uma suposta lei física que impediria absurdos como o paradoxo do avô, que eliminaria a clara relação de causa e efeito existente no Universo.

Ninguém sabe de onde essa lei emergiria, mas, para Visser, ela faz todo o sentido. "Eu sou totalmente a favor da "Conjectura de Proteção Cronológica" e defendo que seja elevada a um "Princípio de Proteção Cronológica" ", diz. "A realidade parece não nos fornecer máquinas do tempo e eu gostaria que nossos modelos de realidade correspondessem ao que realmente vemos lá fora... ou NÃO vemos lá fora, como é o caso aqui." As maiúscula são dele. Krasnikov, em seus estudos, também parece ter descartado viagens no tempo. "Eu acredito ter colocado o problema da máquina do tempo para dormir", disse, referindo-se a uma palestra que deu no ano passado.

Apesar disso, ninguém provou que buracos de verme não possam mesmo ocorrer. Se eles existirem, Krasnikov e Visser esperam que eles sejam aberrações naturais, produzidas como resquícios do Big Bang, a grande explosão que, supõe-se, tenha dado origem ao Universo. De toda forma, o conceito é por demais fascinante para que os físicos o deixem encostado numa prateleira. "Meu objetivo nesse ramo é forçar a teoria até que ela se quebre", diz Visser. "Os destroços de uma teoria que você empurrou ao limite podem ser um bom lugar para procurar novas idéias sobre o que fazer no futuro."
 

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