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Brasília Online

13/03/2007

Lula foi mais conservador do que Palocci ao fixar meta de inflação

KENNEDY ALENCAR
Colunista da Folha Online

Em junho de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou cinco pessoas para uma reunião à beira da piscina no Palácio da Alvorada na qual seria definida a meta de inflação de 2005. Estavam lá o vice-presidente José Alencar e o "núcleo duro": os ministros Antonio Palocci Filho (Fazenda), José Dirceu (Casa Civil), Luiz Gushiken (Comunicação de Governo) e Luiz Dulci (Secretaria Geral).

Com a inflação acumulada em 12 meses próxima a 17% pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), seria tomada então a decisão mais importante do primeiro mandato.

Palocci proporia meta de 5% ao ano. Mas Lula exigiria 4%. E só concordaria com 4,5% a contragosto. A opção resultou numa política monetária de juros mais altos e também no menor crescimento da economia em 2005 e 2006.

No livro "Sobre Formigas e Cigarras", Palocci narra em detalhes como tentou convencer Lula três vezes a adotar uma meta menos rigorosa. Na última vez, o ministro "encarnou o papel de advogado do diabo" e perguntou: "Presidente, eu não quero ser chato. O sr. sabe o que significa uma meta muito apertada de inflação, não é?". Sério, Lula respondeu: "Eu sei que vai significar mais juros. Isto está claro para mim".

Palocci conta que Dirceu "não disse mais nada, mas não escondia o desagrado pelos rumos que a reunião tomara". O chefe da Casa Civil "defendeu um índice mais confortável" (5,5%), mas vendo o radicalismo de Lula disse que não se oporia aos 5% da equipe econômica. Gushiken e Dulci apoiaram o "meio-termo", 4,5% sugeridos por Palocci.

Curiosidade: Alencar deu razão a Lula, elevou o tom de voz e "tascou que, por ele, a inflação seria zero". Palocci diz que Gushiken interveio em seu "socorro" e disse ao vice: "O que estamos discutindo não é número que mais nos agrada, mas a meta a ser atingida e o esforço que ela vai exigir".

Depois da reunião, quando Palocci disse a Bernardo Appy qual fora a decisão, o então secretário-executivo da Fazenda se espantou: "Mas, ministro, quatro e meio vai ser uma pedreira!". E foi.

No primeiro mandato, o Banco Central passaria a justificar os juros altos como decorrência da ousada meta de inflação decidida por Lula. A política monetária virou alvo até hoje do chamado "fogo amigo" (PT e integrantes do governo), da oposição, dos empresários e dos sindicatos.

"Lula, sem que se notasse, havia sido mais radical do que a sua própria equipe econômica", revela Palocci no livro "Sobre Formigas e Cigarras", da editora Objetiva, 254 páginas, R$ 29,90, nas livrarias a partir de hoje.




Lula como ele é

Na virada de 2004 para 2005, com irônico estímulo de Lula nos bastidores, houve debate intenso sobre eventual erro de dosagem do BC ao fixar os juros. No primeiro mandato, o PIB (Produto Interno Bruto) cresceu em média 2,6%. A taxa de 2005 foi de apenas 2,3%. No ano seguinte, 2,9%. Números bem abaixo do prometido "espetáculo do crescimento".

Palocci chegaria a procurar Lula tempos depois, quando notou que o presidente se sentia "desconfortável" com críticas a suposto exagero da meta de inflação de 2005.

Foi o tempo em que o senador Aloizio Mercadante (PT-SP) propôs a Lula elevar a meta para 5,5%. Mercadante e Ciro Gomes, então ministro da Integração Nacional, reuniram-se com o presidente e o convenceram a reabrir o debate sobre a meta, sem saber que o próprio Lula fora o pai da idéia de torná-la mais rigorosa.

O então ministro da Fazenda procurou o presidente, disse que era contra a revisão, mas afirmou que faria um discurso para um recuo caso Lula julgasse necessário.

Lula refletiu e resistiu: "Não vou aumentar meta de inflação coisa nenhuma. Nós decidimos assim e continuo a achar que a decisão foi correta. Esqueça o assunto".




A moderação econômica

Na campanha de 2002, quando sugeriu a Lula lançar a "Carta ao Povo Brasileiro", embrião da guinada econômica do PT para o rigor fiscal e monetário, Palocci fez reuniões com empresários para obter propostas. O documento objetivava acalmar o mercado e o empresariado nacional, bem como combater a pressão para Lula anunciar com antecedência sua equipe econômica.

De João Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo, Palocci ouviu sugestão para elevar o superávit primário para mais de 4% do PIB. Lula não quis se comprometer com números.

No texto, a idéia era tratar a elevação do superávit como algo temporário. A frase "vamos preservar o superávit primário enquanto necessário para impedir que a dívida pública aumente" virou "vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário...".

No início de 2003, Lula elevaria o superávit de 3,75% para 4,25% ao ano. E essa decisão, vista pelo PT como transitória, seria muito atacada quando ficou claro que se tratava de uma medida que Palocci desejava implementar por um período de 10 anos.

O empresário Jorge Gerdau é citado no livro como "o mais entusiasmado com a proposta de esforço fiscal de longo prazo". Para Palocci, ela não prosperou porque o mensalão deu início a uma guerra política que levaria a oposição a querer enfraquecer Lula ao máximo, pensando na sucessão de 2006. Ele atribui a esse objetivo os ataques que passou a sofrer de oposicionistas que antes o elogiavam.




"Não me interessa acusar FHC e pagar a conta"

No período de transição do governo Fernando Henrique Cardoso para a administração petista, Palocci recebeu ordem de Lula: "Não carregue nas tintas. Não me interessa acusar FHC e pagar a conta". Foi feito um relatório de transição duro, mas sem alarmismo na economia, apesar de Palocci ter dito a Lula que a situação encontrada era pior do que imaginara.

O ex-ministro, hoje deputado federal pelo PT paulista, revela que "a impressão não foi das melhores" ao encontrar Joaquim Levy pela primeira vez. No entanto, diz que Levy seria na Secretaria do Tesouro a pessoal ideal para "guardião do cofre". Sobre Afonso Bevilaqua, que acabou de deixar uma diretoria do Banco Central, escreve: "Seu conservadorismo é exatamente o recomendado à autoridade monetária".

O ex-ministro conta que o câmbio foi motivo de preocupação constante em sua gestão, mas que determinou aos auxiliares que evitassem debates públicos.

Dá uma alfinetada no sucessor, Guido Mantega, um dos maiores críticos internos da política cambial. "Não houve mudança no câmbio [quando Mantega assumiu]", diz Palocci, para argumentar que o regime de flutuação de câmbio não comportaria medidas drásticas.




Aliados e adversários no governo

Num estilo polido, sem grandes petardos em relação aos colegas de governo, Palocci admite ter tido, durante sua passagem de governo, muitas divergências com José Dirceu. Mas afirma que a relação pessoal entre eles sempre foi "civilizada" e conta que tinha um jeito de lidar com o ex-chefe da Casa Civil. Sempre que o noticiário político e as disputas internas elevavam a temperatura entre eles, Palocci ia pessoalmente ao gabinete do colega, num gesto de deferência que amenizava o conflito.

Palocci não diz explicitamente, mas se depreende que o ex-ministro Luiz Gushiken foi seu grande aliado. O "Chininha", como Lula o chama na intimidade, foi o primeiro a aventar a possibilidade de Palocci chefiar a Fazenda, em outubro de 2002. A princípio, Palocci conta que rejeitou a idéia, firmando-se na possibilidade de comandar o Planejamento.

Eleito presidente, Lula chamou Palocci, Dirceu e Mercadante para uma conversa no comitê de São Paulo. "Eu ainda não decidi os nomes dos ministros, mas vocês três têm de se preparar. Entre vocês, eu quero o ministro da Fazenda e o ministro-chefe da Casa Civil". Lula disse que, se Dirceu assumisse o mandato de deputado federal, Palocci seria chefe da Casa Civil e Mercadante, ministro da Fazenda. Se Mercadante ficasse no Senado, pois ele vivia falando dos "10 milhões de votos" que obteve na eleição, Palocci comandaria a Fazenda e Dirceu a Casa Civil. A decisão final seria tomada nos primeiros dias de dezembro de 2002, em reunião na Granja do Torto, onde Lula foi morar com a família enquanto aguardava a posse.

Nas entrelinhas, percebe-se que Mercadante foi um grande rival, bem como os ministros Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento) e Dilma Rousseff (Casa Civil). De Mercadante, recebeu os ataques econômicos mais duros. Furlan, segundo Palocci, vivia se queixando do câmbio e pedindo desoneração de impostos. "Cada vez que me colocava, por alguma declaração pública mais contundente, numa saia justa, Furlan sempre tomava o cuidado de me telefonar em seguida e se desculpar", escreve.

O ex-ministro conta que um dia o colega do Desenvolvimento lhe perguntou por que cobravam IPI de protetor solar e papel higiênico. Palocci telefonou para Jorge Rachid, para ouvir explicações técnicas sobre essa cobrança. "Vamos acabar com mais esse imposto!", diria então a Furlan.




Lula "quase deprimido"

Palocci diz, eufemisticamente, que Lula ficou "quase deprimido" em alguns momentos durante o escândalo do mensalão.

Afirma que a primeira-dama Marisa Letícia teve papel importante no bastidor, mas não entra em detalhes. Segundo ele, Lula se surpreendia com as revelações que surgiam a cada dia sobre o relacionamento de Marcos Valério com Delúbio Soares e o PT. Afirma que os empréstimos de Valério ao partido não eram conhecidos no Planalto.

Em julho de 2005, oito meses antes de sua queda, o chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho, conversou com ele numa fria manhã sobre uma eventual candidatura ao Palácio do Planalto no ano seguinte. "O presidente está realmente pensando em não ser candidato. E nós vemos o seu nome como opção. O Ciro Gomes também é uma alternativa, mas percebemos uma preferência por seu nome", disse Gilberto.

"É melhor vocês pensarem no Ciro", respondeu Palocci. "O trabalho que estou fazendo na economia é totalmente incompatível com a candidatura", afirmou. O então ministro disse ainda que desejava ser candidato a governador, mas que se retirara da disputa por causa da função na Fazenda.

E terminou a conversa: "Diga a Lula que ele terá de ser candidato ainda que não tenha perspectiva de ganhar. Só ele poderá defender o bom governo que fez".




"Pare de onda, Palocci"

Palocci relata no livro que, enquanto o Ministério Público investigava seus ex-auxiliares, "um novo e inesperado foco de tensão com origem no interior do próprio governo se somaria aos ataques cada vez mais freqüentes de setores da oposição". Era novembro de 2005.

Refere-se à entrevista na qual Dilma Rousseff (Casa Civil) classificou de "rudimentar" o plano de ajuste fiscal de longo prazo que Palocci e o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, defendiam nas reuniões com Lula.

O ex-ministro da Fazenda diz que Lula dera aval à idéia e que o então deputado federal Delfim Netto (PMDB-SP) era seu inspirador.

Foi conversar com Lula e dizer que aproveitaria o feriado de 15 de novembro para refletir se continuaria no governo. Colocou o cargo à disposição. Conta que havia à época muito sofrimento familiar. Palocci pediu à mulher Margareth que protegesse a filha mais nova, Carolina, e os enteados Marina e Pedro.

Na volta do feriado, voltou a insistir com Lula na idéia de deixar o governo. "Pare de onda, Palocci", atalhou o presidente. Carolina ficaria decepcionada, diz Palocci.

O deputado conta que, em 2005, avaliava a investigação do Ministério Público a respeito de Rogério Buratti, seu auxiliar na primeira passagem pela Prefeitura de Ribeirão Preto, como um pretexto para investigá-lo.

O então secretário da Segurança Pública de São Paulo, o tucano Saulo de Castro Abreu Filho, estimularia, na sua visão, investigações policiais contra ele porque desejava ser candidato a governador e via no petista um eventual adversário.




O caseirogate

"Não pratiquei qualquer ato que tenha ferido a lei e atentado contra as instituições do meu país, o governo do qual participei ou a minha família e os nossos valores", escreve Palocci no livro.

O ex-ministro sustenta que não mandou quebrar nem vazar o sigilo bancário de Francenildo Costa. Nega ter freqüentado a casa brasiliense montada por ex-auxiliares que queriam fazer lobby em Brasília _acusação sustentada por Francenildo e estopim dos eventos que levariam à sua queda.

A respeito da violação do sigilo, diz: "Desconfio de que quem o fez certamente tinha a intenção, ainda que completamente equivocada, de tentar me ajudar, sem imaginar que estaria, involuntariamente, me colocando numa situação insustentável.

Palocci relata que jornalistas "deram espaço a um boato que lança suspeita pelo vazamento" sobre o assessor de imprensa, Marcelo Netto. Em depoimento à Polícia Federal, Netto negou ter ordenado a quebra do sigilo e também o vazamento dos dados. Palocci conta que o então assessor se afastou dele naqueles tempos.

Jorge Mattoso, então presidente da Caixa Econômica Federal, lhe alertara dias antes da violação do sigilo, que técnicos do banco haviam descoberto "movimentação atípica" na conta de Francenildo.

Diz que recomendou a Mattoso que agisse dentro da lei, mas que até hoje se questiona "se não deveria, em função das previsíveis consequências de um vazamento, ter dado maior atenção e assegurado com cuidado redobrado o fluxo daquela informação".

Palocci disse a Mattoso que teria de deixar o cargo se a quebra e o vazamento não fossem esclarecidos. Escreve que o documento "transitara por dezenas de mãos até chegar ao destino final [a revista Época]".

Na tarde de 27 de março de 2006, em encontro com Lula, Palocci disse, segundo seu relato, que não conseguira elucidar o caso, que se sentia politicamente responsável porque o episódio acontecera em área sob seu comando e que, portanto, pagaria "o preço político". Saiu da Fazenda.




"Se o PAC buscar mais ousadia fiscal, será ainda melhor"

Segue a íntegra da entrevista concedida na manhã de segunda-feira:

Folha - O desejo de Lula de meta de inflação de 4% em 2005 contra proposta de 5% da equipe econômica (alvo fixado seria de 4,5%) não retrataria mais eventual despreparo do presidente, pois exigiu custo da política monetária e menor crescimento, do que realmente uma preocupação com inflação baixa? Lula acertou ao ser mais radical que sua equipe econômica?
Palocci
- É uma boa questão. E, como relatei no livro, num determinado momento daquela reunião, cheguei a achar que a decisão estaria sendo tomada não de forma despreparada, mas talvez sem todas as informações. Foi por isso que insisti até o final com o presidente. E ele mostrou extrema clareza sobre sua decisão e as conseqüências. Penso hoje que o presidente acertou na mosca.

Sua decisão levou não só a uma inflação menor, mas colocou a inflação, hoje, num patamar mais baixo e consistente, com pelo menos dois efeitos essenciais: os agentes econômicos ganharam previsibilidade e isso já está aumentando o investimento privado (em 2006 a formação bruta de capital fixo foi mais do que o dobro do PIB, o Produto Interno Bruto). Há aumento do poder de compra nas classes mais pobres que, somado aos programas sociais, começa a alterar de forma mais duradoura nossa péssima distribuição de renda.

Folha - Aos olhos de hoje, com um crescimento médio do PIB de 2,6% no primeiro mandato, Lula não errou por exagero?
Palocci
- Não, Lula não exagerou. Ele quis uma inflação menor e conseguiu. Minha preocupação, naquela reunião, não era obter uma meta maior, mas ter certeza de que ele estava consciente de sua decisão. E me pareceu que ele estava sabendo exatamente onde queria chegar. O sacrifício exigido para atingir aquela meta se reverterá num crescimento social e economicamente mais robusto daqui para a frente. Desse ponto de vista, a decisão foi bastante acertada.

Folha - A valorização do real não é evidência de erro de dosagem da política monetária?
Palocci
- Não. A valorização do real é evidência crescente de melhoria do risco-país. Se você fizer uma curva do câmbio e colar numa curva do risco país, vai ver que são similares no tempo e na magnitude. O fato é que o Brasil melhorou muito, o comércio mundial cresce como nunca, as commodities estão com preços recordes, e nosso problema externo está muito bem encaminhado. Nesse quadro, a moeda valoriza mesmo. É bom que se diga que isso valoriza o poder de compra do trabalhador também. Dadas essas condições favoráveis, grande parte dos exportadores consegue ganhar no preço a diferença da valorização do real. Nos últimos quatro anos, por exemplo, o preço do conjunto das exportações tem superado a valorização do real em todos os anos. Mesmo assim alguns setores sofrem, pois nem sempre a produtividade dos setores acompanha essas mudanças. Mais recentemente as importações têm crescido mais do que as exportações, dado o aumento do consumo das famílias e as próprias necessidades dos exportadores. Estamos caminhando para uma posição de mais equilíbrio na questão cambial.

Folha - Em algum momento do primeiro mandato, o BC exagerou na dose?
Palocci
- Opinião sobre cada momento da política monetária não é uma questão relevante. O fato é que a política monetária teve um grande sucesso. E a economia brasileira vai se beneficiar disso por muitos e muitos anos. A renda dos mais pobres também. E penso que o sucesso ou o insucesso de uma determinada política econômica é o seu resultado para a previsibilidade da economia e para a renda das famílias.

Folha - O sr. revela o desconforto de Lula ao ler a primeira versão da "Carta ao Povo Brasileiro", semente da política econômica de rigor fiscal e monetário. Relata que, no governo, o presidente apoiou a política econômica, mas teve momentos de dúvida. Por que Lula conviveu mal com essa política?
Palocci
- Não. Penso que o presidente teve e tem plena consciência da relação entre esforço e resultados em matéria de política econômica ou mesmo em outros terrenos da política. O desconforto que existia naquele momento era provocado pela consciência de que ele poderia receber um país em crise, que exigisse rigidez na política econômica. Não me parece que alguém possa gostar disso. O presidente Lula sabe fazer conviver, em suas decisões, com emoção e racionalidade. Firmeza fiscal e compromisso social. O governo que fez o maior superávit do último período é o mesmo que fez o Bolsa Família. O presidente que estabeleceu uma meta apertada para a inflação é o mesmo que fez o Fundeb (Fundo da educação básica).

Folha - A negociação com João Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo, ter chegado ao detalhe de quanto deveria ser o superávit primário não dá razão aos críticos que acusam Lula de ter feito concessões demais para conquistar o poder?
Palocci
- Não se tratava de concessões, tratava-se de diálogo. Naquele período, eu e os membros da coordenação da campanha falamos com centenas de interlocutores. Empresários, líderes sindicais e de movimentos sociais, agentes políticos e econômicos. Era uma interlocução necessária a quem disputava um governo pra valer. Além disso, fazer uma política econômica rígida não foi uma concessão a empresários, mas uma medida de responsabilidade com o país e que resultou numa melhoria fundamental do emprego e da renda. Todo o país se beneficiou dos resultados. Apenas citei um entre centenas de diálogos que tivemos naquele período. Em outras passagens do livro, cito nossos diálogos com a CUT e a Força Sindical, por exemplo.

Folha - O sr. escreve que Lula "nunca fez muita questão de pacificar as posições antagônicas" no governo, num estilo de dividir para reinar. Ele estimulava seu conflito com Dirceu?
Palocci
- O estilo do presidente Lula não é o de dividir para reinar. Ele respeita diferenças, convive com elas, explora o que elas trazem de riqueza nas formulações e políticas públicas. Quando o assunto não está maduro usa o tempo e as divergências a seu favor. Esse é o benefício da democracia. Nunca vi o presidente instigando auxiliares a confrontos artificiais.

Folha - O sr. minimiza o duelo com Dirceu, mas, nas grandes decisões, ele defendia posições que se chocavam com as suas. O sr. escondeu o jogo?
Palocci
- Não, de forma alguma. Acho que deixei muito claro no livro que tivemos divergências. Ressaltei inclusive que foram muitas. Mas o fato real, para além dos boatos, é que tive uma convivência absolutamente civilizada com José Dirceu. Exercemos o jogo da democracia e não o jogo das intrigas.

Folha - Pelo livro, entende-se que seu grande rival foi Mercadante e Gushiken seu maior aliado. É uma interpretação certa?
Palocci
- O Gushiken sempre jogou muito a favor da política econômica e mais ainda da unidade do governo. Mas seria absolutamente injusto com Mercadante tratá-lo como rival da política econômica. Mercadante foi líder do governo no Senado. Defendeu com vigor a política econômica. Escreveu um livro sobre o primeiro governo Lula onde o principal destaque são as conquistas econômicas do período. Ele teve uma divergência conosco em torno da meta de inflação. E, naquele momento eu não poderia revelar, no debate, que a decisão havia sido do presidente. Meu papel era segurar o rojão, pois aquela meta era do governo e a responsabilidade de defendê-la era minha. Só revelo hoje no livro porque isso já é passado, a inflação foi debelada. Ao que tudo indica, a inflação brasileira vai começando a deixar o ambiente econômico para se alojar nos livros de história. Graças ao bom Deus.

Folha - O que teria feito de diferente como ministro da Fazenda em relação às medidas econômicas?
Palocci
- Os resultados estão aí para mostrar que fizemos o que o bom senso mandava e o país precisava. É lógico que podemos ter cometido erros, que o tempo mostrará. Não tenho constrangimento de admiti-los se isso ocorrer. Mas só o tempo mostra com clareza os maiores erros e os maiores acertos das políticas econômicas. Mas continuo divergindo, democraticamente, com os críticos que pediam inflação maior para ter mais crescimento ou interferência no câmbio para evitar uma crise de balança de pagamentos. No primeiro caso, continuo acreditando que mais inflação não traz mais crescimento. Mais inflação é apenas mais inflação, com menos renda e menos previsibilidade no processo econômico. No caso do câmbio, a crise de balanço de pagamentos, tantas vezes anunciada, nunca veio. Ao contrário o país fez um ajuste espetacular nas contas externas. Além disso, nunca acreditei que governos possam alterar o câmbio real em regimes de câmbio flutuante.

Quando nós instituímos o PIS/COFINS sobre produtos importados, o fizemos apenas para equiparar a tributação dos importados com os produtos e insumos nacionais. Muita gente achou que a medida diminuiria as importações. De novo o tal do câmbio flutuou e ajustou, valorizando um pouco mais o real e neutralizando a medida. Com o tempo os agentes econômicos vão percebendo que a pauta correta para enfrentar a valorização cambial é produtividade. Hoje as dez maiores empresas exportadoras são as cinco maiores importadoras.

Folha - No livro, o sr. diz que o presidente ficou 'quase deprimido' em momentos do mensalão. Por que exatamente? E qual foi o papel de dona Marisa, abordado muito genericamente no livro?
Palocci
- Foi de fato um período muito duro. Quem está no governo quer governar, fazer as coisas acontecerem.

Folha - O sr. acha que foi um erro não ter saído do ministério no final de 2005?
Palocci
- Naquele momento achei que tinha cumprido minha tarefa, de reequilibrar a economia. Estávamos entrando num período eleitoral e a oposição focou na minha pessoa. Minha saída poderia ajudar a preservar a economia da crise. Esse era o meu pensamento. Tinha certeza que aquele bombardeio não teria fim.

Folha - Seus críticos dizem que o sr. vivia pedindo demissão a Lula como forma de se fortalecer politicamente.?
Palocci
- Não é verdade, nunca usei esse expediente. Mesmo porque nunca me considerei insubstituível. Quem fala isso na verdade não gosta de admitir que o Presidente Lula sempre foi o grande avalista da política econômica. Ou alguém acha que seria possível ter feito todo aquele esforço sem o apoio do presidente? Pedi para deixar o governo no final de 2005 por achar que deveria sair, mas o presidente não me deu espaço para avançar, não quis conversar sobre a hipótese. Teria sido melhor se eu saísse naquele momento. Para mim e para o governo.

Folha - O sr. considerou desleal o ataque de Dilma ao plano fiscal de longo prazo num momento de fragilidade política sua? Ela foi outra grande rival no governo?
Palocci
- Dilma nunca foi rival e muito menos desleal. Ela deu e continua dando uma enorme contribuição ao presidente e ao país. Tratávamos nossas divergências como parte da construção das políticas. Naquele episódio do plano fiscal inclusive, o contraponto dela foi feito com o ministro Paulo Bernardo, e não comigo. Embora estivesse evidente que eu apoiava os estudos do ministro Paulo Bernardo sobre o esforço fiscal de longo prazo.

Folha - A respeito do caseirogate, o sr. disse ao presidente que "se sentia politicamente responsável e que teria de pagar o preço"? Responsável exatamente por quais erros?
Palocci
- Foi o de não perceber que algumas coisas, aparentemente pequenas e sem importância real, tomam dimensões desproporcionais em períodos de crise. Não pedi a quebra do sigilo do caseiro, como acabou ficando claro nos depoimentos prestados no processo. Nem determinei o vazamento daqueles dados. Mas aquilo aconteceu em instituições sobre a minha responsabilidade. E aí eu tenho uma responsabilidade política. Cometi um erro político. E não poderia transferi-lo para ninguém. Tinha que assumir e deixar o governo. E foi o que fiz.

Folha - Apesar de não ter abordado esse episódio no livro, chamar auxiliares do ministro da Justiça à sua casa para pedir uma investigação da PF contra o caseiro não é tão grave quanto a quebra do sigilo?
Palocci
- Não chamei auxiliares da justiça para pedir uma investigação. Eu os chamei para obter a opinião deles se eu deveria ou não acionar uma instância da justiça frente ao quadro dado. Naquele momento, meu temor era que o ativismo pudesse levar ao erro, como acabou acontecendo. Preferia levar o caso às autoridades competentes. E eles sugeriram que eu não o fizesse. É evidente que eu teria assumido pessoalmente qualquer representação que fosse ser feita.

Folha - Alguma vez passou por sua cabeça ser candidato a presidente da República? Acha que sua carreira política poderá retomar esse projeto um dia? Ou de ser candidato a governador de SP, como disse que desejava?
Palocci
- Nunca me passou pela cabeça ser presidente da República. Aliás, nunca havia passado pela minha cabeça ser ministro da Fazenda também. Em 1998, o PT de São Paulo me convocou para ser candidato a governador. Mas eu articulei com o PT e com Lula a candidatura da Marta, pois achei que ela estava em melhores condições. Em 2005, fui procurado pelo PT de São Paulo para saber se eu tinha interesse na candidatura ao governo de São Paulo. Descartei de pronto, pois achava incompatível com meu trabalho no ministério e o PT tinha excelentes opções.

Hoje continuo não tendo planos nesse sentido. Ter sido ministro da Fazenda do primeiro governo Lula foi uma missão muito além do que eu poderia imaginar quando ingressei na política. Me sinto muito honrado com isso. Fui prefeito da minha cidade por duas vezes e isso me honrou muito também. De forma que não sinto nenhuma vontade de novos planos em termos de governo. Hoje quero ser um bom deputado federal e ajudar o governo na articulação da política para melhorar a economia e os projetos sociais. Tenho certeza de que posso contribuir com isso e gosto muito do trabalho na Câmara, onde estou pela segunda vez. Estarei bem feliz se conseguir fazer isso.

Folha - No livro, o sr. diz não gostar de criação de planos econômicos. Lula criou o PAC, que afrouxou sua política fiscal. Como o sr. avalia o PAC?
Palocci
- No livro, refiro-me a planos heterodoxos, com tabelamento de preços ou de câmbio, que criam passivos bilionários. O PAC é um plano de medidas de incentivo. O grande acerto do PAC é o foco no investimento. Há uma questão fundamental no PAC que só entende quem operou o orçamento por dentro. A cada ano, na execução orçamentária, os gastos de custeio brigam com os investimentos. E sempre ganham de goleada. Porque é muito mais fácil realizar um determinado gasto de custeio do que executar uma estrada ou uma hidrelétrica. No primeiro caso é uma canetada. No segundo são anos de estudo do projeto, licitação, disputa de licitantes, autorizações ambientais e de modelagem. Se o governo não se articular para realizar os investimentos eles simplesmente não acontecem. Esse é o grande valor do PAC: definir os investimentos, organizá-los um a um, estabelecer parcerias transparentes com o setor privado e realizar as obras.

Será muito saudável se ao longo dos próximos anos os investimentos conseguirem vencer algumas partidas com os gastos de custeio. Insisto que isso é uma luta cotidiana, não uma declaração de intenções.

Mas um ponto que foi anunciado no PAC precisa de maior destaque são as medidas para incrementar o investimento privado. É o investimento privado, pela sua magnitude, que vai garantir de fato um crescimento maior. Melhorar o investimento público sempre é bom. Mas acreditar que ele resolve a falta do investimento privado é um erro. É o investimento privado que pode garantir um crescimento maior.

E aí a pauta é extensa: melhoria das agências, melhoria da política tributária, redução da burocracia, reformas microeconômicas. Nesse campo o primeiro governo Lula fez muito (lei de recuperação de empresas, reforma da legislação da construção civil, reforma do crédito, nova lei da micro e pequena empresa), mas ainda há muito o que fazer. Crescimento econômico não é um assunto trivial. O que fizemos no primeiro governo foi criar as bases macroeconômicas para o crescimento e começar a alterar a lógica da distribuição de renda no processo de crescimento. Estamos no mais longo e mais qualificado ciclo de crescimento das últimas décadas. Agora é preciso avançar. O PAC é sim um avanço, mas é apenas uma parte do trabalho que precisa ser feito. Se o PAC buscar mais ousadia fiscal, será ainda melhor. Em países com endividamento alto a poupança pública é instrumento de crescimento.

Folha - No livro, o sr. dá uma receita econômica que prevê redução de gastos correntes e foco nas reformas. Lula parece pouco disposto a seguir esse caminho no segundo mandato. Ele está cometendo um erro?
Palocci
- Espero que minhas sugestões não sejam reduzidas a estes dois pontos. Crescimento não é um assunto óbvio. Na questão do gasto público, nas condições de alto endividamento do Brasil, a poupança pública é fator de crescimento e de estabilidade das políticas sociais. Acho que nunca consegui convencer muitos interlocutores disso, mas insisto que um bom comportamento fiscal dá mais recursos para os programas sociais e não menos.

A questão das reformas é um tema bastante complexo, no mundo todo e não apenas no Brasil. Não acho que o presidente esteja indisposto com o tema. Ele levou o tema da reforma tributária aos governadores e instituiu o fórum da previdência. Reformas têm que ser bem construídas e bem articuladas. Além disso, há as reformas microeconômicas, que tem um grande valor para a melhoria do ambiente de negócios e a simplificação dos procedimentos burocráticos, judiciais e tributários.




A sucessão de 2010

Folha - Quem são os nomes mais fortes do PT hoje para disputar a Presidência em 2010? Quais são as chances de o partido vencer?
Palocci
- Antecipar essa discussão é o maior desserviço ao segundo governo do presidente Lula. O sucesso do PT em 2010 só pode se dar com o sucesso do governo.

Espero que o PT não perca tempo com este debate. O segundo governo Lula está apenas começando. Por que se preocupar com 2010? Nossa preocupação hoje deveria ser 100% com o sucesso do segundo governo. Precisamos pensar mais no Brasil e menos em nós mesmos. Na melhora da economia, na distribuição de renda, nas políticas de educação. Quando vi os dados do ENEM no Estado de São Paulo fiquei estarrecido. Essas deveriam ser nossas preocupações hoje. Quando chegar 2010 teremos feito muito pelo Brasil e aí temos apenas que decidir um nome, entre tantos excelentes lideranças que o PT tem. Se focarmos na procura de um nome hoje, vamos esquecer que temos enormes responsabilidades até lá.

Folha - O sr. acredita no êxito de uma candidatura presidencial de Ciro?
Palocci
- Ciro é um grande político. Tem sensibilidade, conhece o Brasil, tem experiência administrativa. E está com excelente humor. Não me parece que ele esteja preocupado com 2010.

Folha - Quem será o candidato do PSDB na sua opinião, Serra ou Aécio?
Palocci
- São dois nomes muito fortes, de Estados muito fortes. Mas me parece que o problema do PSDB é muito menos de nomes e muito mais de projeto para o país.
Kennedy Alencar, 42, colunista da Folha Online e repórter especial da Folha em Brasília. Escreve para Pensata às sextas e para a coluna Brasília Online, sobre bastidores do poder, aos domingos. É comentarista do telejornal "RedeTVNews", de segunda a sábado às 21h10, e apresentador do programa de entrevistas "É Notícia", aos domingos à meia-noite.

E-mail: kennedy.alencar@grupofolha.com.br

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