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Brasil lado B

08/01/2002

Mercado financeiro dos miseráveis: um vira-lata por uma bicicleta sem rodas

Caso precisasse de um slogan trágico, porém sincero, o da feira sob o viaduto do Glicério, no centrão decadente de São Paulo, seria mais ou menos assim: "As sobras das sobras dos restos humanos". São levas de miseráveis de ruborizar Victor Hugo. Trocam de tudo. Um um par de botas "Sete Léguas" por colchão aos pedaços; uma carcaça de um motor-rádio por uma camiseta de campanha eleitoral furada na qual se lê apenas "Collor- 20"; um sofá de dois lugares, mas com apenas um assento preservado, por uma carteira de couro.

Na feira do Glicério, que ocorre aos domingos, o escambo inclui também vagas debaixo de viadutos. A mercadoria de menor valor são os cobertores de flanela, retrato "grunge" do miserol. "Aqui a gente só não troca a alma, o resto vai no rolo", pronuncia-se Antonio Gonçalves Conceição, 55, paranaense de Cascavel, morador de rua há oito invernos. "Já consegui trocar bicicleta sem roda por um cachorro gordo, redondo de gordo", aponta para o fiel vira-lata, hoje, dois anos depois, só o couro e o osso.

Os cães, aliás, são moedas de alta cotação. Morar na rua com um vira-lata é segurança e companhia. "Mulher também é bom, mas não se pode confiar; hoje vive com a gente e a amanhã dá uma veneta, despiroca do juízo e vai morar com um sujeito melhorzinho de vida", abre o coração o mineiro, também dono de um cão que lhe lambe os pés e as havaianas, Ivanildo Souza Fernandes, 47, três de rua. "Cachorro, não!"


As mulheres do Glicério, que são raras, têm direito de resposta: "Oxe, esses vagabundos ficam cheio de moral agora, no calor. Quero ver no inverno, quando eles brigam no tapa e na faca por nós. Nada se compara a um cobertor de orelha", larga o verbo Gorete Alves de Souza, 32, três de rua, baiana de Jequié. "São uns vagabundos, sujos e esculhambados. Podem ficar com seus cachorros, pois se parecem, as caras de uns são os rabos dos outros", senta a pua a ex-faxineira.

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