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Diário, Depressão e Fama

23/05/2005

Que doença triste é a depressão

HERMELINO NEDER
Colaboração para a Folha Online

Não é possível monopolizar a tristeza e fazê-la marca de um clube dos deprimidos, como Cervantes fez com Dom Quixote, ao apelidá-lo Cavaleiro da Triste Figura. Porque, claro, toda doença é triste.

Status de doença, a depressão tem. É um transtorno do humor, e está classificado no CID (Código Internacional das Doenças) da OMS (Organização Mundial da Saúde) como F32, com o nome Transtorno Depressivo.

Esses dias comprei um livrinho chamado Depressão. Parece um desses manuais que explicam resumidamente determinado assunto. Foi escrito por um professor, Edzard Ernst (alguém já ouviu falar?), e publicado pela editora Vitória Régia. Apesar das referências obscuras dadas pelo próprio livro, ele apresenta um quadro muito semelhante ao que tenho visto por aí como depressão. E também por aqui, em mim e nos leitores que se declaram depressivos.

O livro diz que a característica principal da depressão é a perda geral de interesse por coisas que antes atraíam e agradavam. Bingo. Que a pessoa sente cansaço, dificuldade para se concentrar, queda geral de energia e que até as pequenas tarefas demandam um esforço enorme. Bingo de novo. Que os médicos, para diagnosticar depressão, observam se a pessoa, além de humor deprimido e perda de interesse, apresenta cinco destes sintomas por duas semanas no mínimo:

1-Perturbação do sono ou excesso de sono
2-Mudança de apetite, perda ou ganho de peso
3-Calmaria ou agitação mental e física
4-Má concentração ou indecisão
5-Cansaço, perda de energia
6-Sensação de inutilidade ou culpa excessiva
7-Pensamentos recorrentes de morte ou suicídio

Putz, já tive tudo isso. Só não sei se sou um deprimido de carteirinha por não me lembrar de experimentar cinco desses sintomas por duas semanas em seguida.

O livrinho avisa aos que convivem com deprimidos que estes não escolheram estar assim e que não estão inventando sua doença. E que se o cara falar em suicídio, é melhor acreditar e procurar imediatamente ajuda profissional.

Tudo isso poderia configurar um belo álibi para um vagabundo. Ou melhor, um refresco para quem passou a vida sendo chamado (e chamando-se) de vagabundo. Depressão tem estigma de preguiça, vagabundagem. Será que alguém é realmente vagabundo por opção? Não me parece crível, pois a felicidade está no movimento; do corpo, das coisas, dos pensamentos. E em encontrar-se absorto com alguma atividade. O deprimido não se liga.

Quantas vezes presenciei mulheres acusarem seus maridos de vagabundos, principalmente as de classe social mais pobre. Os ricos, como sempre, se beneficiaram primeiro das novidades: com os novos antidepressivos, um dos medicamentos mais vendidos do mundo, a apatia ganhou status de doença. Coisa esquisita, status de doença, ser um ganho, mas assim, rico apático virou deprimido. Pobre continuou vagabundo.

Apesar de, como disse, a tristeza ser marca de todas as doenças, considero-a realmente uma ótima caracterização para a depressão. Homens fortes e mulheres lindas, gente inteligente e talentosa, todos passam horas, dias, meses, anos como paralisados, de cama. Os exames médicos não acusam nada. Aparentemente, essas pessoas não têm nada. Então, por que essas pernas fortes não andam, esses braços sadios não trabalham? Apenas uma tristeza imensa explica a imobilidade.

É difícil admitir que se é deprimido. É uma doença antipática. Parece que o cara está fazendo corpo mole. Os próprios portadores não entendem e não aceitam as oportunidades perdidas, o potencial irrealizado. Pessoas ricas e perfeitas fisicamente vivem culpadas pelo sentimento de que devem algo à vida, não de que a vida lhes deva algo.

Segundo o livrinho, Marilyn Monroe era deprimida. Eu a vejo linda e engraçada. Ótima atriz de comédias, é esquisito pensar que ele tivesse um transtorno do humor. Suicidou-se. Para a fama imortal, valeram seu talento e beleza. De que valeram para seu bem-estar durante a vida? Qual destes dois, ao final da vida, poderia dizer que foi mais feliz: Marilyn ou Clodoaldo Silva?

Clodoaldo Silva teve paralisia cerebral (falta de oxigênio durante o parto). A doença impediu que andasse até os sete anos e trouxe-lhe dificuldades de coordenação motora. De família pobre, sem dinheiro para comprar um carrinho, seu irmão o carregava nos braços. Melhorou depois de quatro cirurgias. "Sinto-me realizado toda vez que ouço o Hino Nacional", conta Clodoaldo. Ele treina seis vezes por semana, entre piscina e academia. Acorda às 4h30 e toma dois ônibus para chegar ao treino. Os recordes mundiais para deficientes dos 50 metros e dos 100 metros livres são seus. "Acho que, com esses resultados, mostramos que somos capazes de realizar qualquer coisa, basta ter um objetivo e correr atrás dele". Para Clodoaldo, querer é poder. Para um deprimido, o problema é o não-querer. Para ambos, Clodoaldo e um deprimido, querer é o primeiro passo. Depois, ambos têm que criar condições para realizar seus sonhos.

Clodoaldo ganhou sete medalhas olímpicas em Atenas, seis de ouro, uma de prata. Ele agora é famoso,mas não aparece muito na TV. A minha suspeita é que sua fisionomia e sua fala prejudicam sua imagem e a imagem do Brasil campeão. Clodoaldo teve e tem problemas seríssimos, sociais e/ou físicos. Ele é um herói. Não deve ter depressão: quem tem depressão não gosta de se mexer.

Não creio que um deprimido queira trocar seu mal por paralisia cerebral. Mas imagino o nível de angústia que experimentou Marilyn Monroe na hora do suicídio. Se bem-estar e paz interna (para não falar em coisas irrealizáveis como felicidade), forem os bens supremos durante a passagem pelo planeta, valeria mais a pena ser Clodoaldo ou Marilyn? Pergunta sem resposta. Outra: Marilyn também foi uma heroína?

Leitores me sugerem que abra um blog, um clube dos deprimidos. Clube das Tristes Figuras? Não gosto da idéia, mas talvez fosse realmente possível pleitear a marca da tristeza para esse clube hipotético. Talvez o senso comum não se importe se roubarmos tristeza, desde que usemos adjetivos mais apropriados para outras doenças. Talvez para o câncer, devastador fosse o mais adequado; para a Aids, trágica; para a diabetes, torturante. Sei lá.

A depressão se caracteriza pela tristeza, como definição. Que mal tem o deprimido? Ele tem tristeza. Não é problema de pernas, sangue, coração. É da mente e da alma. Não gosto de me ver como doente, mas a essa altura, posso dispensar o status?

O que faço é pedir aos mais próximos que não me aborreçam com uma moral animada. A eufóricos, pediria que me deixassem em paz e tirassem o sorriso do caminho para eu passar com minha ... tristeza. Que devagar se vai longe.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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