Colunas

Diário, Depressão e Fama

27/06/2005

Meu bolero com Maitê Proença

Acabei de chegar de Manaus onde fui fazer uma ponta no filme "Onde andará Dulce Veiga?". Faço um músico que acompanha a cantora Dulce Veiga, personagem de Maitê Proença. "Toco" teclado e sax na cena, entre aspas, porque, na "vida real", toco apenas violão. O diretor Guilherme de Almeida Prado repetiu comigo a jogada de Hitchcock com Bernard Hermann em "O homem que sabia demais": o trilheiro no papel de um músico.

Dulce Veiga canta o bolero "Asas do amor", composto por Guilherme e por mim para a cena em que ela se apresenta numa churrascaria sobre palafitas nas águas realmente negras do Rio Negro. Tudo muito exótico. E eu lá de calça de tergal, camisa de poliester e colete, suando em bicas.

Cinema é como sumô, a arte marcial daqueles japoneses gordos. Há todo um ritual antes do grito para a ação: o lutador joga sal na arena, levanta uma perna como se fosse um cachorro fazendo xixi, ameaça o adversário, faz tudo isso de novo algumas vezes e, só então, luta. O combate dura uns 10 segundos. As cenas têm ritual semelhante. Preparam-se as luzes, o cenário, o ângulo da câmera, os apoios para ela, as lentes, dão-se os últimos retoques na maquiagem, secam-se as últimas gotas de suor e aí, "luzes, câmera, ação": quando dura 30 segundos, já é uma cena longa.

Por isso, Maitê e eu tivemos muito tempo para conversar, entre as tomadas do bolero. Temos algo em comum, o fato de escrever colunas, ela para a revista Época. Falamos de muita coisa: religião, Ronaldo e Cicarelli, Dom Quixote e Gulliver, filhos, colunas, e ... casamento.

Uma vez, li sobre uma pesquisa que visava classificar os maiores traumas que podemos sofrer. Em primeiríssimo lugar, vinha a morte de um filho, o mais terrível, o que causa a mais longa e profunda depressão. Em seguida, pela ordem, a morte de um ente querido, separação e perda de emprego. Separação: um honroso terceiro lugar! Hoje em dia, é cada vez mais frequente os casamentos acabarem em separação.

Maitê tem um teoria: os casamentos deveriam ser como na Índia. Lá, a família escolhe o casal. Não apenas os pais, toda a família. Estabelece-se uma grande temporada de conversações entre os membros das famílias para escolher os pares adequados. Ainda segundo Maitê, os cônjuges aprendem a se gostar e os casamentos são mais felizes e duradouros, por ser um projeto que envolve toda a família. No ocidente, o jovem de vinte e poucos anos, recém saído da adolescência, escolhe a pessoa com que se casará pelo critério da paixão, esse tipo de "amor quase loucura". A possibilidade de errar seria muito maior nesse processo do que no dos indianos.

A espera no seting de filmagem é realmente longa e a gente não conversa só com os atores, a classe dos famosos. Acaba-se conhecendo toda a equipe. Eu gostei muito de conhecer a encarregada das perucas, uma nissei, muito conceituada em sua área, chamada Emi Sato. Ela é casada e tem quatro filhos. Não se separou até hoje. Ela me explicou como é o casamento japonês. As filhas têm mais liberdade de escolher os cônjuges do que os filhos. Porque as filhas, quando se casam, saem de sua família para entrar em outra, a do marido, na qual ela se torna uma nova filha. Quem tem menos liberdade de escolha é o filho mais velho, que é preparado desde pequeno para continuar morando com os pais quando se casar. Para cuidar deles. A nora, nesse caso, precisa ser muito bem escolhida. Mesmos costumes alimentares, mesma classe social etc. O primogênito, para compensar seu trabalho futuro, é o filho mais favorecido pela família. A exemplo dos indianos, parece que há pouca separação entre os casamentos arranjados japoneses.

Uma reportagem de capa de Época, sobre filhos de casais separados, diz que essas crianças não sofrem tanto como se pensava, desde que os pais continuem amigos e próximos dos filhos. Parece que a separação dos pais pode ser até benéfica para essas crianças que, desde cedo, teriam uma experiência positiva de separação. Separação não como fim do amor, mas de transformação das relações. Essas crianças seriam mais maduras, nesse aspecto, do que filhos de casamentos estáveis.

Argumentei com Maitê que o casamento para toda a vida talvez não seja natural. E que, com a conquista do mercado de trabalho pela mulher e com o enfraquecimento do conceito religioso de matrimonio, o casamento ocidental estaria evoluindo para permanecerem juntos apenas casais que tenham, na vida conjugal, mais benefícios do que custos. Não permaneceriam casados por dependência econômica ou medo do inferno. Ela continuou defendendo o modelo indiano. Chegamos a um acordo sobre os ocidentais estarem no meio de uma transição da cultura matrimonial: ainda não dá para saber como será o futuro do nosso casamento. Casas separadas? Casamento sem a idéia do "para sempre", com pessoas prevendo que deve durar pouco, considerando que assim é que é natural? Se surpreendendo com casais longevos e não com separações.

Na volta para casa, me lembrei (eu, que sou péssimo para decorar letra de música) de um bolero que aprendi com meu pai, meu professor de violão: "Duas almas".

Duas almas que o destino
Um dia escolheu
Pra amar com desatino
São duas, tu e eu

Amor, quase loucura
Loucura de querer
Que tempos de ventura
Passamos sem saber

Que um dia no caminho
Que cruzavam as nossas almas
Viria a sombra do ódio
Para apagar o sol do amor

E desde aquele instante
Melhor fora morrer
Nem perto, nem distante
Podemos reviver

Nem perto, nem distante
Podemos reviver
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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