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Diário, Depressão e Fama

04/07/2005

A limonada de Tom Zé

Assisti, dias atrás, a uma apresentação de Tom Zé no Programa do Jô e fiquei surpreso com a "ruindade musical" desse ícone da música brasileira: a voz de timbre irregular e feio, a desafinação e, o pior, a dificuldade para entrar nos tempos certos da música. Pobre Tom Zé? Não: grande Tom Zé. Ele é um dos músicos brasileiros mais famosos no exterior.

Como se sabe, TZ ficou dezessete anos numa espécie de ostracismo imposto pelo mercado fonográfico depois de ter estreado, na década de sessenta, como um dos expoentes do tropicalismo. Foi redescoberto, num sebo, por David Byrne, que o lançou internacionalmente e, de lá para cá, seu sucesso é história.

Não aponto nenhuma novidade ao flagrar a falta de musicalidade de TZ (chamo de musicalidade aquela porção natural do talento musical, o popular bom ouvido). Ele mesmo, em seu livro "Tropicalista lenta luta" (Publifolha), demonstra uma consciência profunda de sua falta de jeito e dos recursos que usou para driblá-la. TZ teve que inventar uma nova forma de compor, de cantar e de se apresentar. Nada do que faz é o que o público espera. E, entretanto, ele consegue ser fácil e comunicar-se automaticamente. No programa do Jô, em pouco tempo, a platéia estava cantando, regida por esse maestro canhestro.

TZ superou aquilo que se costuma chamar de talento, no caso da música, a tal musicalidade. Sua trajetória demonstra que criatividade e amor por uma atividade são mais importantes do que talento. Diante de uma pergunta sobre o talento para a dança, o coreógrafo Alwin Nicholai não mencionou as típicas noções de aptidão física, como capacidade de saltar, de abertura de pernas e força muscular; ou de aptidão musical, como senso rítmico; tampouco falou em inteligência espacial. Disse que bailarino é aquele que gosta de se mexer. Ou seja, vinculou o talento da dança ao amor pelo movimento.

A música brasileira não seria a mesma sem TZ. Isso não é pouco: ela seria a mesma sem Alexandre Pires, Fábio Jr., Leonardo e Daniel, e tantos outros. E os brasileiros ficariam sem uma boa limonada.

TZ fez uma limonada do limão que a vida lhe deu. Ou, para usar outro lugar comum, ele tirou proveito de um mal negócio. Ou, ainda, blefou com uma mão ruim e ganhou a rodada. TZ transformou seus defeitos em potencia, como diz Graccho Braz Peixoto em sua tese de mestrado, em cuja banca tive a sorte de estar: na mesma semana em que vi o programa do Jô, li essa tese e revi a aventura de TZ.

Fazer uma limonada de um limão é uma analogia que uso muito. Numa situação difícil, penso em como fazer uma limonada daquilo. Generalizar as próprias experiências e propô-las num artigo é enfadonho e pretensioso. Mas a idéia de que somos capazes de transformar dificuldades em vantagens é profundamente inteligente e emocionante. Não é original: há uma quantidade de filmes e livros, bons e ruins, a partir dela. Apenas gosto de mantê-la por perto.

Uma doença pode ser considerada um limão. Mesmo uma doença terminal, como sugere a novela "A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói". A triste depressão poderia ser vista como um limão. É necessária uma certa criatividade para conseguir a água e, principalmente, o açúcar. Mas não precisamos ser criativos como TZ. Somos todos providos de alguma capacidade de reinventarmo-nos. E também de reconhecer as saídas criativas que alguém, vivo ou morto, descobriu. Um amigo, um terapeuta, um professor, Freud, Dostoiévski etc.

Nosso presidente, por exemplo, deveria ler ou recordar, se já leu, "Crime e castigo". Na obra-prima de Dostoiévski, reconhecer a culpa perante a sociedade é um jeito de retomar a própria vida. Muita gente diz que ele poderia tirar proveito dessa situação. Se Lula não se tocar, Roberto Jefferson beberá toda a limonada sozinho.

Vale a pena ler e ouvir Tom Zé. Depois de seu redescobrimento, ele declarou numa entrevista: "sabe o que é que tem? Eu estou feliz, ora meu Deus! Que diabo, eu estava com tanta raiva de tanta coisa e agora parece que fui feliz a vida toda."
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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