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Diário, Depressão e Fama

01/08/2005

PT, estupro e bate-papo

Tenho uma amiga petista, um dos meus melhores amigos. Passamos as férias de julho com sua família.

Aliás, falando de férias, leitores que perceberam meu sumiço escreveram perguntando cadê a coluna. Obrigado pelo interesse. E pela preocupação: alguns até pensaram que eu estivesse prostrado pela melancolia. Felizmente, foi apenas um imprevisto: como saí de férias meio de improviso, não deu para avisar no último texto (A limonada de Tom Zé). Foi mal.

Mas como ia dizendo, essa amiga é uma prova de que a capacidade de conversar bem, entre duas pessoas, não é requisito para a amizade.

Apesar de não gostarmos de conversar um com o outro, pois sempre vira discussão, somos amigos. O assunto política, por exemplo, nem pensar, é briga na certa. Entretanto, sabemos que podemos contar um com o outro, e esse é o maior requisito.

Ela me acusa de ter dificuldades de me relacionar, de ser prepotente e pretensioso. E incapaz de conversar amenidades. Só concordo com a última acusação. Eu a acuso de ser pouco depressiva e de ter uma visão estreita, pouco desenvolvida, da vida e das pessoas. Ela só concorda com a primeira.

Bertrand Russel, em seu livro de auto-ajuda "A conquista da felicidade", diz que pessoas problemáticas, quando conseguem elaborar seus problemas, tornam-se mais profundas do que aquelas naturalmente descomplicadas.

Minha amiga não é complicada. É capaz de emoções e sentimentos sinceros e de estabelecer vínculos concretos com amigos e familiares. É inteligente, honesta e competente, além de bonita e gostosa (sorry, maridão). Mas, como lhe digo, é teimosa de doer com algumas convicções, na minha opinião, pouco amadurecidas, às vezes, puros clichês, papagaiadas anacrônicas.

O que é uma forma de prepotência: o semi-analfabeto é pior do que o analfabeto. Uso esse bordão de brincadeira ou no auge de nossas brigas. Sério, calmo e naive, digo-lhe que lhe falta depressão, aquilo que prostra, e psicanálise, o pensamento compartilhado a partir do dor.

O tema de nossa última discussão foi o estupro da menina de rua de doze anos pelo estudante B. Ela se condói com a tragédia da garota e vê o cara como um monstro, um criminoso. Eu tento mostrar que a tragédia é dele também, mas a conversa acaba logo com minha ofensa "não dá para conversar com você", depois que ela não me deixa terminar nem a primeira frase. Após anos de tentativas frustradas, sabemos quando um assunto só vai provocar exasperação. E interrompemos logo.

Gostaria de ter-lhe exposto pelo menos três argumentos:

1.Que não sendo psicopata, ou seja, um criminoso compulsivo, ele acabou com sua própria vida. Que é possível uma pessoa normal cometer um crime num momento de desequilíbrio. Poderia ter acontecido com um filho nosso;

2.Que se ele for psicopata, isso é uma tragédia em si;

3.Que a tragédia tem vários lados a se considerar, o da mãe e do pai do criminoso, por exemplo.

Mas ela só vê a dor da garota, inegável e terrível. O fato de a menina ser pobre e o criminoso burguês só acentua suas convicções. Minha amiga parece não perceber que é, ela própria, uma burguesa. Ela adora o Lula.

Recentemente, o presidente deprimiu-se. Mas já passou. Ele venceu ou tenta vencer a depressão pelo elogio da fama, sua fama de pobre que chegou à presidência, e sua outra fama, agora meio combalida, a de ético, o mais ético dos brasileiros. Ele não tenta resolver sua depressão com um trabalho emocional mas, sim, com uma deixa marqueteira, do diabólico Duda Mendonça, que lhe aconselha dirigir-se às classes mais pobres, já que as mais ricas estariam informadas da corrupção no PT.

Mas, pela primeira vez, ele se deprimiu. Recentemente, pudemos ver imagens de um Lula triste. Antes da crise, suas fotos e as dos companheiros eram a imagem da empáfia. Quem não se lembra daquelas fotos de petistas, pré Roberto Jefferson, todos rindo? E daquela manchete de jornal ou revista: "estão rindo de quê"?

Além da fama, o presidente tenta sair da depressão usando outro recurso muito popular: culpar o outro. Ele voltou a atacar as elites e a oposição.

O semi-analfabeto é pior ...

Na verdade, ele não tem como usar o recurso (já um chavão psicanalítico) "entrar em contato com a própria tristeza". Recentemente, declarou que não precisa de diploma para governar este país. Que bastaria o coração. É um péssimo exemplo para um país que precisa desesperadamente valorizar a educação. Na minha fórmula, não basta o amor. O conhecimento também é necessário. Não me frustra apenas o português, o "texto" e a ignorância histórica do presidente. Desgosto também de sua falta de autoconhecimento, revelada, por exemplo, no hábito de culpar o outro. Mas, como minha amiga, Lula não é depressivo.

Eles foram agraciados com um dos maiores dons da natureza: uma grande energia para fazer. Não precisaram de análise.

Depressão, como doença, é tristíssima. Não sei o que é pior, sofrer um trauma ou ser deprimido. Com certeza, ser pobre não é pior do que ser deprimido. Mas um pouco de depressão faz falta para uma boa conversa. Com o outro e consigo mesmo.

Um dos primeiros leitores desta coluna (Daniel) a saudou assim: está na hora de vermos as "coisas" de um ponto de vista mais depressivo e, ao mesmo tempo, mais humano.

É bom pensar que traumas, crises e transtornos possam servir para alguma coisa.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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