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Diário, Depressão e Fama

12/09/2005

Cansei de Dirceu, mudei sobre Gikovate

Cansei de falar de política. E de ver a novela das CPIs, que perdeu o apelo. O roteirista deveria ter imaginado que apenas uma grande CPI da corrupção manteria melhor o interesse. É uma pena ter-me cansado, pois tinha mais dois ótimos títulos para colunas: "Lula lá deu dó" e "Eu sou inocêncio".

Esse segundo renderia um texto de fundo psicanalítico, que talvez já tenha sido escrito por um Gontardo ou um Jabor (não leio tanto jornal nem vejo tanta TV para saber se foi escrito). Mesmo José Simão poderia ter explorado, como piada pronta, o ato falho de José Dirceu naquele depoimento, o seu famoso "eu sou inocêncio". Visto pelo ângulo psicanalítico, esse lapso é exemplar como revelação. Ao querer dizer "sou inocente" mas deixar escapar o famoso "sou inocêncio", Dirceu nos proporcionou um vislumbre, em tempo real na TV, do propalado desejo que todo criminoso teria de confessar-se. Esse desejo é uma das bases de "Crime e castigo" de Dostoiévski, um desejo criado pela necessidade de expiar-se.

Naquele momento, Dirceu, o maior ícone de uma esquerda "que se acha", comparou-se a Inocêncio Oliveira, do PFL, aquele que foi acusado por José Genoíno de ter usado "o prestígio do seu mandato", num "procedimento imoral", ao solicitar ao Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) a perfuração de dois poços artesianos, numa fazenda e numa revenda de motos, ambos de sua propriedade. Na ótica de Dirceu, comparar-se a Inocêncio talvez seja rebaixar-se. No entanto, é o que o seu ato falho sugere. Rebaixar-se é apenas uma parte da expiação. A parte mais importante é a confissão em si.

"Lula lá deu dó" seria sobre o dó que a gente esquece de sentir pelos idealistas ou bem intencionados que perderam o rumo. Também, o dó como o constrangimento e a ironia embutidos em observações como "fico envergonhado quando o Lula abre a boca". Ainda, claro, o dó do Brasil, pela decepção, pelo dinheiro e o tempo perdidos. E finalmente, o dó como prazer pela dor do adversário.

Mas como me cansei da política, andei vendo outros canais que não a Band News e a TV Senado. Zapeando, deparei com Flávio Gikovate na TV Cultura num programa cujo nome escapuliu.

O assunto era auto-estima, principalmente com referência à criança, mas também incluía situações adultas. Gikovate falava de depressão por um ângulo que me ajudou a compreender melhor as conexões entre depressão e fama que intuí quando bateu-me a idéia desta coluna. Ele fez uma analogia entre fast food/obesidade e consumo/depressão. Dizia algo sobre nossa cultura, essencialmente comercial, ter desenvolvido remédios para obesidade, a mesma obesidade que causou com a invenção do fast food. Haveria uma cadeia de eventos interrelacionados cujo objetivo final seria o lucro: fast food/obesidade/remédios para emagrecer.

Em relação à depressão, a propaganda voltada para a compra irrefletida (para o "ter", não para o "ser") causaria depressão a quem não pode ter os produtos anunciados. Causaria depressão mesmo em que pudesse adquiri-los, uma vez que a felicidade prometida não viria no pacote.

A partir disso, pensei na fama como o bem supremo alardeado meio dissimuladamente pelos meios de comunicação. Já reparou como as reconciliações, as vitórias e as voltas por cima, características dos finais felizes dos filmes americanos, são testemunhadas por uma grande assistência? Não basta os protagonistas se beijarem no final: o beijo precisa ser transmitido pela TV. Muitos precisam ver (e aprovar). Não bastam as satisfações do beijo em si.

No Brasil, Estado norte-americano mais ao sul (não falo isso com ódio esquerdista, vou avisando, gosto de muita coisa que vem lá do norte), até empresários bem sucedidos precisam ganhar visibilidade. Lançam mão de musculação, plásticas, cremes, grifes, metrossexualismo e, finalmente, namoram a Galisteu, a Cicarelli, uma famosa qualquer, que talvez tenha se tornado famosa ao namorar um famoso qualquer, e se tornam o famoso da vez. O símbolo máximo desse processo são os olhos arregalados de Roberto Justus na capa de Caras.

E eu que queria ser famoso ... Nunca o quis a qualquer preço, é verdade, principalmente se o preço for barato. Quero pagar caro pela fama, dar o melhor de mim: fama sem prestígio, tô fora.

Me liguei como pai na entrevista sobre a auto-estima da criança. O apresentador terminou o programa com esta observação: a criança, num determinado momento da vida, começa a gostar dos pais, mais tarde, de um amiguinho, de namorar etc., enfim, começa a gostar de pessoas. Mas o mais importante é que aprenda a gostar de si mesma.

Gikovate relaciona a conquista da auto-estima com a construção de valores internos como responsabilidade, capacidade de por-se no lugar do outro, disciplina, organização, não mentir, fazer e cumprir contratos e outros. Pelo que entendi, esses valores promoveriam uma recompensa afetiva intrínseca. Alguém com essa formação não aceitaria propina, por exemplo, pois isso o faria não gostar de si mesmo. É bonito. Tomara e oxalá seja verdade.

Ele deu uns toques para os pais, que seriam em primeira e em última análises, os principais construtores de valores internos. Por exemplo, não se deve ficar o tempo todo enchendo a bola da criança com elogios exagerados e falsos: não é qualquer desenho que deve ser exaltado e pendurado na parede como se fosse um Picasso. Outro: mesmo se a criança é bonita, não se deve ficar sempre elogiando sua beleza. Elogios vem de fora e a criança vai se acostumar a depender de aprovação externa.

Deduzi que exaltar qualquer feito ou fala da criança, na presença dela, poderia favorecer a necessidade da fama, de ser comentada sempre, de ser veiculada primeiro na mídia doméstica, depois na grande mídia. Minha mulher acha que o Jô Soares parece um garotinho gordinho exibidinho, o orgulho do papai e da mamãe. Dance, filhinho, para a dona Maricotinha ver, toque bongô, como é que fala "eu te amo" em inglês? E em francês? Minha mulher é malvada.

O resultado da estima que vem de fora seria a incapacidade de sentir satisfação por si mesma, pois a criança, e posteriormente o adulto, não se estimaria por si só. Como a seqüência fast food/obesidade/remédios para emagrecer, estaríamos também vivendo esta outra: falta de auto-estima/depressão/remédios para depressão.

Eu achava que Flávio Gikovate queria fama fácil, pois aparecia muito na mídia. Ele foi até psicólogo dos jogadores do Corinthians. Acostumei-me respeitar o psicanalista que não põe o nome nem na porta do consultório. Agora mudei de idéia sobre Gikovate: é um quase famoso (pois famoso mesmo é o Michael Jackson), mas não é barato.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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