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Diário, Depressão e Fama

26/09/2005

Um emprego novo e um velho sonho

Querido diário, fui convidado para ser o coordenador e um dos professores de música numa escola internacional, onde as aulas são dadas em inglês. Agora eu tenho um sonho novo. Mas não quero esquecer aquele antigo que você conhece tão bem.

Esse emprego não me tornará mais famoso, mas poderá me deixar menos deprimido. Porque estou achando estimulante conviver com pessoas de diferentes partes do mundo, tentar entender mais de perto a cabeça desse tal de primeiro mundo, praticar meu inglês ourinhense que estava há mais de dez anos no armário e possibilitar que minha filha aprenda inglês desde a infância. Como se sabe, professores de escolas particulares têm o direito de matricular seus filhos onde trabalham, sem os custos principais.

Ainda não sei se aceitarei. Pelo jeito, esperam muito de mim nessa escola. Talvez demais. É fácil entender por quê. Toda escola de ensino regular, não uma específica de música, que almeja ter música no currículo, enfrenta problemas no Brasil: o país que tem uma das melhores músicas do mundo sabe trabalhar melhor com artes plásticas do que com música. Praticamente ninguém sabe o que fazer com a área musical. É algo assim como se as escolas soubessem melhor o que fazer com basquete do que com futebol ... o que, aliás, acontecia quando eu era estudante (como estará hoje o futebol nas escolas? E capoeira, será que há um número razoável de escolas que usem capoeira na educação física?).

Toda escola em que tive a oportunidade de trabalhar apresentava o mesmo quadro: a falta de um programa musical que orientasse as atividades da área e, como conseqüência direta disso, muito sonho. Belos sonhos: montar uma orquestra, um coral de vozes angelicais, bandas de rock etc. Entretanto, em geral, as crianças ainda não sabiam cantar adequadamente nem bater palmas no ritmo certo.

Eu tenho agora um sonho novo: fazer essa escola cheia de possibilidades materiais e intelectuais cantar bem e pegar o pulso da música. "Stick to basics, execute perfectly", como diria um bom técnico de futebol americano, "aferre-se ao básico, execute-o com perfeição". Em seguida, estudar os elementos primeiro pelo ouvido, depois pela visão, na partitura. Por experiência, sei que quando o básico está bem estabelecido, o resto (orquestras, corais e bandas, angelicais ou infernais) começa a encontrar seu lugar. Desde que haja condições materiais e vontade institucional, o desenvolvimento da área começa a se impor por si mesmo, quase naturalmente, quando a base é sólida.

Eu tenho um velho sonho que, à medida que o tempo passa, vai ficando cada vez mais difícil se tornar realidade: trabalhar com crianças que vivam dois estados pessoais extremos, a pobreza material e a riqueza do talento musical. Um estado é concreto, a pobreza, e o outro, latente, o talento. Seria um projeto que oferecesse bolsas para pequenos talentos musicais, pinçados das favelas ou de outras regiões pobres. Ainda não encontrei as condições materias para realizar esse sonho, que envelhece. Menos mal que outros o realizem de maneiras diversas, como o coreógrado Ivado Bertazzo, na dança, e o maestro Bacarelli, com orquestras sinfônicas.

Quem me inspirou o projeto foi um menino ramelento e aparentemente limítrofe que vi, há muitos anos, numa viagem ao norte de Minas Gerais. Era um garoto com aquela aparência de crianças africanas subnutridas, esqueléticas com a barriga grande. Devia ter uns 10 anos. Ele tinha sempre alguma coisa líquida escorrendo no rosto, não me lembro se era baba ou meleca de nariz.

Causou-me pena imediata. Mas somente até o momento em que a senhora que cuidava dele pediu-lhe para "cantar". O que ele fez então não era exatamante um canto, mas um tipo de percursão corporal misturada com movimentos que pareciam dança, enquanto cantava estranhamente uma canção que eu não conhecia. Era uma performance original e completa. Uma obra de arte. Minha pena se transformou em emoção instantaneamente, em prazer estético. Naquele momento estético, eu não vi mais o menino pobre nem a remela.

Levi-Strauss escreveu que muitas vezes a verdadeira arte está numa simples canção e não numa sinfonia que mal consegue esconder a mediocridade por trás de sua massa sonora.

E como dizia minha analista, não vivemos no reino dos desejos, mas no das possibilidades. Que condições teria encontrado aquele menino para desenvolver seu talento? Aonde suas performances poderiam te-lo levado?

Enquanto acalento meu velho sonho, trabalho para gente rica. Graças a Deus. Se aceitarem minhas condições, vou trabalhar numa escola cheia de possibilidades. Uma vez, disse para minha amiga petista que eu gostava da riqueza. Ela, que vibrou quando a dona da Daslu foi presa, ficou escandalizada com minha observação.

O bom da riqueza são as possibilidades, as condições.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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