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Diário, Depressão e Fama

10/10/2005

Acho que vou de não no referendo

Por culpa do José Mayer, acho que vou de "não" no referendo das armas. Se fosse o Raul Gazola, eu não teria dúvidas: cravava "não" na lata.

Acho um saco quando artistas vão à TV fazer a cabeça do povo. Quando José Mayer, apenas um exemplo, nos diz que é bom votar pelo sim, que peso pode ter isso? Nenhum, zero, nicas. O que ele ou qualquer outro famoso entenderia sobre a 'sociologia das armas'? Em que sua presença na TV se fundamenta?

Na fama.

Mas fama, em si, é fundamento para alguma coisa? Muitos desses caras são famosos apenas porque sua profissão se relaciona com exposição pública. Não porque sejam expoentes em suas áreas. É algo como ter músculos sendo atleta: o fato de um atleta ser musculoso não indica que seja um ás em sua área. Ser famoso, trabalhando em TV, não significa nem mesmo ser artista. Um dos maiores exemplos disso é Raul Gazola que destruiu um ótimo filme para o qual fiz a trilha sonora, "A hora mágica". Culpa do diretor que o escolheu, o meu parceiro Guilherme de Almeida Prado. Gazola não é um mau ator, simplesmente não é ator.

Atores, cantores e bailarinos são a ralé entre os artistas. Mas uma ralé famosa. Como estão mais próximos ao público, são os mais expostos, têm maior probabilidade de adquirir fama. De certa maneira, eles merecem, pois são os que mais dão a cara (-de-pau) para bater, o que, por outro lado, revela uma certa falta de auto-crítica, de senso do ridículo. E uma enorme vaidade. Cantores são chamados de canário pelos outros músicos: gorjeiam por natureza. Realmente, um cantor de música popular não precisa nem mesmo estudar música. Na verdade, nenhum músico popular precisa, mas o cantor precisa menos. É comum que não saiba nem mesmo onde se toca o dó no piano. Apenas um exemplo. Claro, há exceções: cantores, atores e bailarinos pensantes. Mas a elite no mundo das artes são os diretores de cinema ou teatro, os compositores, escritores, pintores, coreógrafos, dramaturgos, entre outros tipos de artistas reflexivos.

Ué, então Guilherme de Almeida Prado errou? E compositores como Chico Buarque e Gilberto Gil não estão iludidos há décadas com atores como Fidel Castro e Lula? Bem, Chico e Gil têm uma desculpa: esses dois atores são ases. Mas se um diretor de cinema pode enganar-se, iludir-se com um não-ator, que dirá o povão do nosso querido rincão? Terá havido algum artista americano mais influente no século XX do que a atriz Jane Fonda? Meus amados norte-americanos são burros em certos assuntos: remember Bush. A cultura da fama torna a massa estúpida. O Brasil, nesse sentido, é um estado norte-americano.

Talvez isso de ralé e elite não funcione com artistas: há uns que estudam, uns que nunca, uns que estudam apenas seus instrumentos, uns que não se estudam nunca. E somos todos meio atrapalhados e deprimidos. E há aqueles que não se tocam de que é inapropriado meter-se nessas campanhas e não se furtam a emprestar sua fama para causas que pegam bem. A coisa toda é muito suspeita: talvez estejam apenas se promovendo. Não acredito que tenham uma reflexão amadurecida sobre os assuntos que apóiam. Agüentariam uma discussão séria com um estudioso do tema?


Que partido teve mais apoio artístico do que o PT? Deu no mensalão.

O psicanalista Roberto Kehdy me disse que se lembra desde criança de uma frase que o impressionou: a dúvida é cruel, a certeza é idiota. Fundamentalistas religiosos e certos petistas não têm dúvidas. Muitos atores, cantores e bailarinos também não. Senão, talvez nem subissem ao palco.

E a aura de certeza, de unanimidade, que tem a campanha do "sim" no referendo? Quem agüenta a unanimidade? Acho que foi Nelson Rodrigues, o dramaturgo, quem disse que toda unanimidade é burra. O pessoal com quem convivo, o meu meio, é totalmente "sim". Quando digo que sou "não", lá vem estranhamento. Na verdade, falo mais para provocar; ainda estou em dúvida entre dois argumentos que eu mesmo bolei.

O argumento que me mobiliza para o "sim" é o Maluf. Se não fosse por ele, eu não teria aprendido a usar cinto de segurança e ainda estaria agüentando fumaça de cigarro em restaurantes. Impor às vezes resolve.

Meu argumento para o "não" baseia-se numa analogia com a proibição das drogas. Proibir algo que tem mercado me parece ser o maior incentivo para o seu tráfico. E tudo o que vem junto, máfias, assassinatos, corrupção. Se esse argumento estiver correto, estaríamos prestes a criar o tráfico de armas. Ainda não li, mas parece que a revista Veja também argumentou nessa direção: a proibição de armas como incentivo ao crime, ao contrabando e à corrupção. Remember Hildebrando: talvez haja políticos apoiando o 'sim' e preparando, ao mesmo tempo, um esquema lucrativo de contrabando de armas. Só para gastos de campanha.

Esse referendo é mesmo esquisito. Para começar, ainda não entendi por que temos que resolver essa questão. Por que nos obrigam a resolver justamente e somente essa? Por que não o aborto, as células-tronco, o destino das águas do São Francisco? O povo, que talvez pudesse decidir com prazer e competência o técnico da seleção, agora, assim como o ator, foi alçado a especialista em sociologia das armas.

Para terminar, preste atenção: se você quer dizer não às armas, vote sim; se quer dizer sim, vote não. Quando se tenta discutir com alguém sobre o referendo, tem-se que ficar esclarecendo o tempo todo que sim é não. Me disseram, mas até agora não entendi se o Dalmo Dallari é sim ou não.

Quando uma coisa não foi bem pensada, geralmente é mal colocada, mal escrita. A pergunta poderia ser "você é a favor ou contra a comercialização de armas de fogo no Brasil?" Se for a favor, vote "a favor", se for contra, vote "contra".

Está tudo muito enrolado. Parece coisa de artista.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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