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Diário, Depressão e Fama

24/10/2005

O dia depois do referendo

Dois dias antes do referendo, escrevo este artigo que sai um dia depois. Fiz de propósito: graças à minha esperteza não poderei mais influenciar o voto de ninguém. Odeio me esforçar para fazer cabeças. Apesar do foco reflexivo e não imperativo de "Acho que vou de não no referendo", de duas semanas atrás, leitores argumentaram que eu quis o mesmo que José Mayer e Chico Buarque, que critiquei por tentar fazer a cabeça do povão. Mayer e Chico usaram seu prestígio e fama para condicionar o voto pelo sim; eu pensei em voz alta.

Na semana passada, escrevi sobre futebol. Decidi o tema na última hora. Até ali estava tomado pela dúvida do referendo e pela quantidade de emails de leitores com argumentações convergentes ou opostas às minhas. Por não querer escrever de novo sobre isso (para nem mesmo tentar influenciar), fiquei sem tema e com o problema de não estar interessado em nenhum outro assunto: só consigo escrever com o coração na mão. Fico sempre sujo de sangue. O chutão do Giovanni me salvou. O seu desabafo emocionou-me tanto que o referendo ficou em segundo plano. Veja como um brasileiro pode ser inconseqüente: ligar-se mais em futebol do que numa questão cívica.

Os brasileiros que escreveram são cívicos, estão realmente empenhados em fazer a coisa certa. Levam a questão a sério, expõem sua dúvida quando em dúvida, e argumentam com vigor e até meio desonestamente quando decididos. Todos parecem querer o melhor para o país, embora o aspecto politicamente correto do 'sim' faça com que os que tendem pelo 'não' sejam vistos como 'do mal' pelos adversários. Os do sim patrulham com mais gosto, quase um gosto de certeza religiosa, aquela que pode matar, seja por ideologia, por credo ou por um time de futebol.

Meu pouco de angústia e depressão, movido pela culpa de me importar mais com o chutão do que com o referendo, foi apaziguado por Mr.Nr., um novo colega, que me apresentou este curioso ponto de vista: o referendo e a remarcação dos jogos do Edílson estariam em evidência neste momento apenas para desviar a atenção pública das trapalhadas e escândalos do governo PT. Seu argumento principal: do que o povo gosta mais, de futebol ou política? de um três oitão ou de política?

A princípio, achei delirante, como várias das teorias de conspiração que povoam as mensagens sobre o referendo e sobre o futebol que a coluna recebeu. Mas, recordando que o mensalão não era, enfim, um delírio, e o fato de que nesta semana (17 a 21/10) esteve em pauta uma acareação sobre a morte de Celso Daniel e o julgamento da cassação de Zé Dirceu, considerei: será o benedito?

A esperança é a última que morre no coração dos brasileiros, principalmente aqueles que foram tocados por Pelé, Pagão, Robinho e Giovanni vestidos de branco. Apesar do Zveiter, da aftosa e de ser obrigados a contar com o PT para nos proteger da gripe aviária (preferiria mil vezes o Serra no Ministério da Saúde numa hora dessa), nossos olhos estão mais para o Brasil que muda: o Maluf ficou mais de um mês na cadeia, descobrimos que havia enfim caixa dois na campanha do PSDB mineiro e o Supremo não aceitou o recurso do Zé Dirceu que, se Deus quiser, dança legal dessa vez, legalmente.

Pelo delírio de Mr. Nr., de um jeito ou de outro, escrevendo sobre o referendo ou sobre futebol, eu fiz o jogo de cena do governo. Que bom, consciência tranqüila, portanto. Quero ajudar o governo. Sou quase sempre a favor do governo porque, a princípio, os caras estão lá para fazer o melhor pelo país. Da mesma maneira que, votando pelo não, como votarei, votei, espero fazer o melhor.

Como sugeri, declarar o voto pelo 'não' pega mal. Muitos do 'sim' não entendem que alguém possa votar pelo comércio de armas de fogo na tentativa de fazer o bem. Por essa lógica, eu não poderia ser um pacifista (como sou) que deseja nunca precisar de uma arma (como não desejo) e, ao mesmo tempo, votar pelo 'não' por acreditar que o bloqueio de liberdades e, pior, de algo com tanta demanda de mercado agravaria o problema. Lembra de Al Capone e da Lei Seca? Havia um debatedor no último Roda Viva, um tal de Demétrio, da bancada do não, que além de ser o melhor debatedor, o mais inteligente e o mais claro, parecia claramente movido pelo bem.

Claro que devemos proibir crimes como a exploração infantil, sexual ou não. Mas é no mínimo questionável se a compra de uma arma possa ser vista como crime. E tentar resolver algo tão profundo com proibição é infantil.

No dia depois do referendo, quando você estiver lendo este artigo, estarei na torcida: para que eu esteja errado se o sim vencer, para que a aftosa não prejudique ainda mais nossas exportações, para que o vírus aviário não voe para cá e, como sou bonzinho mas não bobinho, para que o Santos entre na justiça comum para recuperar o genial 4 a 2. E para que o disco que vou lançar (com as músicas minhas e de meu parceiro Luíz Pinheiro que a Cássia Eller cantava) estoure nas paradas. E ganhe um Grammy. E eu fique mundialmente famoso. E, rico, possa realizar um velho sonho.

Bom dia para quem tentou fazer a coisa certa.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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