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Diário, Depressão e Fama

31/10/2005

Ignorância

Marília Gabriela perguntou ao diretor Fernando Meirelles "o que o tira do sério?" Segundo a entrevistadora, que já foi dirigida por ele, Fernando é uma pessoa calma, um profissional sem estresse. Por isso, cabia-lhe a pergunta .

Fernando relatou sua única explosão profissional: com um diretor de efeitos especiais americano. O cara colocava problemas para tudo. Sabe o tipo "isso não dá para fazer"? Que só coloca problema, não ouve sugestões, não mostra boa vontade? O americano era do tipo. O brasileiro estourou em plena Nova York: "eu venho do Brasil até aqui e..."

Fernando chama de ignorância esse tipo de atitude do americano. Quando o cara não ouve, eis um ignorante. Gostei da definição. O que o nosso-novo-diretor-mais-consagrado odeia, o que o tira do sério, é essa ignorância.

Não é a definição usual: condição de quem não é instruído, falta de saber, de conhecimentos.

Esses dias, recebi email de um compositor e professor bem famosinho, grande cara, em que me pedia para explicar melhor minha opção pelo "não" naquele referendo (lembra?). Segundo ele, muita gente que gosta de arma é truculento e precisa dela falicamente (para substituir algo). Eis aí outro tipo de ignorância: o cara que não sabe do que precisa, e compra uma arma, cria um pittbull, aprende jiu-jitsu ou toma anabolizante para ficar bombadão. Essas aparentes fortalezas estariam protegendo o quê?

O email me encorajou a não deixar os truculentos fálicos do "não" na ignorância disto: há muita gente de paz que votou pelo "não" por acreditar que esse seria o melhor voto para a segurança no país. Gente que nunca formaria com Bolsonaro e Fleury mas que, por uma dessas circunstâncias de eleições, acabou do mesmo lado no referendo. Coisas da democracia: já fui petista por um dia, votei em Lula contra Collor.

Muitos do "não" vibraram com a vitória esmagadora, numa demonstração doentia de que algo não vai bem em suas almas. Bons argumentos indicavam o voto pelo "não", mas a vibração por uma vitória que apenas mantém uma situação problemática, apenas para que não piore mais, demonstra no mínimo... ignorância.

Ignorantão: indivíduo muito ignorante, mas pretensioso; leigaço. É um dos meus temas preferidos, o semi-analfabeto pior que o analfabeto.

Ignorantinho: nome que tomavam, por humildade (será?), os religiosos de S. João de Deus, que cuidavam dos pobres

Definições todas do Aurélio, com pequenos comentários deste humilde.

Para aproveitar a menção a pittbull: sou contra quase todo o tipo de proibição, mas se há algo que eu proibiria com gosto e prazer é a criação da raça em todo o território. Notícias de crianças trucidadas por esses animais me abalam terrivelmente. Dono de pittbulls (ou congêneres violentos) deveria ir para cadeia, antes mesmo do cachorro atacar, apenas por criá-los. Por favor, não escrevam para apontar a incoerência entre meu ódio a donos de pittbulls e minha tolerância ao comércio de armas: tô sabendo.

Meu pai gostava de dizer que o mal da humanidade é a ignorância. Dizia que o ignorante tem medo de tudo. É supersticioso.

Ignorantismo: sistema daqueles que pregavam as vantagens da ignorância, sustentando que o saber é prejudicial. Os caras eram ignorantistas, não ignorantes. Mesmo assim ...

Gabriel Garcia Marques, no seu último romance, 'Memórias de minhas putas tristes', fala entre outras coisas, das lições que um homem de 90 anos --aliás, um cronista-- recebe de uma puta virgem adolescente, que não lhe diz nenhuma palavra em todo o romance. Com 90, ele ainda tem coisas a aprender sobre o amor, sobre o trabalho, sobre a vida, sobre a felicidade, sobre sua depressão.

Acho que terei que aprender até o último dia, sou muito ignorante. Para ilustrar: ando menos deprimido porque descobri que devo me ocupar. Terapia ocupacional na veia, fazer o quê? Vivia numa ignorância a meu respeito, a de que precisava de muito tempo livre para fazer minha arte, posicioná-la no mercado e ficar famoso. Não estava compondo, nem vendendo, nem ficando famoso. Só estava me deprimindo.

Outro: tenho descoberto que, se sou de alguma maneira especial, não é exatamente como uma certa crença inconsciente me ditava. Acreditar inconscientemente é agir movido por uma certeza invisível para si mesmo que, no entanto, o guia poderosamente. Talvez seja o pior tipo de ignorância.

Aprender quase sempre dói. É um saco e é tudo o que nos resta: aprender até o último suspiro. Morrer bem, amando e conhecendo? Sei lá.

Só sei que nada sei.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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