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Diário, Depressão e Fama

07/11/2005

Cássia Eller, psicanálise e moralidade

A psicanálise me salvou. Não há termo de comparação entre o que ela e as religiões, ideologias e outras éticas, que experimentei para ter uma vida feliz, fizeram de bom para mim. Até encontrar uma análise competente e amorosa, nunca conseguira pensar sobre mim mesmo livre de conceitos morais.

Como se sabe, há uma diferença fundamental entre moral e ética, principalmente se ética for tomada no sentido original de "caminho para se viver uma boa vida". Uma boa ética é um conjunto de valores úteis, positivos, confortáveis. É possível e até fácil uma boa ética descambar numa moral preconceituosa e persecutória. Basta virar "a" verdade.

A psicanálise tem um código ético bem definido sobre o que é desejável e o que revela desenvolvimento emocional numa pessoa, embora esse código não esteja escrito em lugar nenhum. Assim, é raro encontrar um psicanalista descasado e sem filhos. Pega mal ser solteiro. Ou usar drogas, mesmo as mais leves, as ditas sociais. Não conheço um único psicanalista gay, embora saiba que existam e que são aceitos, sem se falar muito sobre o assunto, nas entidades analíticas. Enfim, há um código não explícito que "diz" como se deve ser. É possível e fácil esse código virar uma moral conservadora na mente de um analista. Basta o analista acreditar que exista a verdadeira psicanálise. Luiz Pinheiro não acredita nisso.

Um de meus melhores parceiros é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, ligada à mais prestigiada entidade internacional do ramo, a Sociedade de Psicanálise Internacional (IPA). E compositor de canções, cantor e poeta. E Luiz, finalmente, é o irmão que a vida providenciou para este filho único, o humilde pobre diabo que vos escreve.

Luiz escreveu um poema que Cássia Eller musicou em parceria com o pai de seu filho Francisco, Chicão, como era chamado pela mãe. Cássia era assumidamente homossexual, às vezes, bi. Otávio Fialho, o pai de Francisco era hétero convicto. Quando Tavinho tocava na banda de Arrigo Barnabé, as mulheres suspiravam por ele. E os homens também: era um rapaz lindo, com uma aparência andrógina. Além de ótimo músico. Caetano Veloso logo o roubou de Arrigo. Luiz Pinheiro, que saiu numas baladas com Tavinho, contou-me que ele tinha simpatia por lésbicas.

O poema de Luiz Pinheiro que os pais de Chicão musicaram chama-se "Eles":

os meninos e as meninas
os meninos e os meninos
as meninas e as meninas
eles só querem é gozar
e que os deixem a sós
os meninos e as meninas
os meninos e os meninos
as meninas e as meninas
eles só querem é amar
e que os deixem em paz


Cássia gravou esta canção no disco "O marginal". O disco, o segundo de sua carreira, leva o nome de uma canção composta a oito mãos: as de Cássia, de Luiz Pinheiro (a letra), de Zé Marcos (músico da sua banda na época) e as minhas. Um dia, se rolar, falo de "O marginal". Hoje estou focado na moral sexual, e desprezando os esbarrões dela com a marginalidade.

Depois que Cássia morreu, Luiz e eu resolvemos gravar um CD com "Eles", "O marginal" e mais sete canções nossas que Cássia cantava. Este é o repertório de "Cássia secreta" que estamos lançando. Só contém as nossas canções que ela cantava. O CD contou com uma espécie de direção artística póstuma: se Cássia não as tivesse escolhido para cantar, provavelmente essas canções não estariam juntas num mesmo álbum.

Cássia adorava os poemas/letras de Luiz Pinheiro. Pretendia musicar outros. Cássia tinha um jeito muito particular de compor. Ele não definia cabalmente a melodia. Parecia estar sempre improvisando. Talvez tivesse uma insegurança para compor. Ele deixou gravadas apenas três composições suas, contando "Eles" e "O marginal". Quando fomos gravar "Eles" em "Cássia secreta", pedimos ao genial (e imerecidamente pouco famoso) Ricardo Breim que escolhesse as melhores frases musicais de Cássia e Tavinho, de maneira a estabelecer uma forma definida à canção. O resultado é maravilhoso, desculpem a puxada de sardinha.

Embora pareça, o artigo não trata apenas de minha brasa. É também sobre histórias como a de Cássia e seu filho. E sobre a postura de um psicanalista que, não amarrado a morais e ideologias, pode escrever sobre diferentes forma de amar/gozar e sobre marginalidade. E é sobre Eugênia.

A vida nos reserva surpresas, para o bem e para o mal, e deve ser por isso que as morais não fazem sentido por muito tempo. Chicão nasceu de uma relação tida como esquisita, de uma mãe lésbica, com histórico de drogas, com um homem casado, um contrabaixista, que convenhamos, ainda não é lá uma profissão assim valorizada pela sociedade. Chicão não chegou a conhecer seu pai, pois Tavinho morreu em um acidente de carro antes que ele nascesse. E sua mãe morreu em 2001, deixando-o órfão na pré-adolescência. Tinha tudo para dar errado?

Sim, se não houvesse na vida de Cássia e Chicão uma moça chamada Eugênia. Vale a pena ler a história das duas no livro "Apenas uma garotinha - a história de Cássia Eller", de Ana Cláudia Landi e Eduardo Belo, Editora Planeta. Como valeria muito que se fizesse o filme que, dizem, será feito a partir do livro. É história de amor para ninguém botar defeito. Eugênia arrumava as roupas de Cássia e a maquiava quando a cantora tinha outros casos. E Cássia, quando encontrou Eugênia, declarou peremptoriamente que encontrara a mulher de sua vida. E avisava a todos os possíveis pretendentes que "Geninha era para sempre".

Depois da morte de Cássia, Eugênia conseguiu a guarda de Chicão, sem ser sua parente consangüínea, decisão inédita no direito brasileiro e um marco na luta dos homossexuais por direitos civis.

Às vezes, a vida nos reserva um Ricardo Breim que organiza e revela o que temos de melhor. Alguém que cuida bem de nossas criações, de nossos filhos. Um bom psicanalista amoroso. Uma Maria Eugênia.

Pessoas acima de qualquer moral.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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