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Diário, Depressão e Fama

14/11/2005

7 x 1

Acho que foi a primeira vez que vi o Santos perder de 7. Que depressão! Senti-me acachapado, mesmo sem saber exatamente o significado da palavra. Quando deprimido, não vou ao dicionário nem que a vaca tussa ou vá para o brejo.

O Santos foi para o brejo diante do pior adversário, um Corinthians comandado por um argentino. Uma explicação plausível é que o time todo estivesse deprimido. Depressão dá falta de vontade de mexer-se.

Afinal, a ótima partida do Corinthians não explica o 7 X 1. Nem a impressionante sorte corintiana, evidente no gol de falta do meio campista loirinho cacheado. Desde quando ele bate falta? Fiquei sabendo que nos treinamentos de cobrança de falta, antes do jogo, ele não acertava nem o gol nem a barreira. E que os colegas comemoraram mais a surpresa pelo seu gol do que o gol em si. Era um daqueles dias: dá tudo certo para um time e errado para o outro. Mas mesmo jogar bem e com sorte não explica um 7.

O erro do juiz, que não expulsou Rosinei com um segundo cartão amarelo, por uma falta próxima à área, também não, embora pudesse explicar uma derrota normal. Como nada explica, lanço minha hipótese de uma possível depressão coletiva. O que será que os homens do Santos pensariam disso?

Na verdade, interessaria a alguém entender a tragédia?

Antes de tentar responder a questão, interponho esta outra: é exagerado falar em tragédia em se tratando de uma mera partida de futebol? Sim, claro, é um hiperbólico exagero. Mas falar em depressão e vergonha associadas a um resultado de futebol parece plausível. E vale a pena tentar entender os sentimentos que envolvem sofrimento.

De fato, senti-me muito triste e ... com vergonha. Vergonha de quê? Não fui eu quem perdeu feio. Por que a derrota de um clube, do qual não sou sócio, que nem é de minha cidade natal, me envergonha? De Ourinhos, SP, comecei a torcer pelo Santos a partir de uma idade em que não tinha consciência de que o Santos era de Santos, SP. Para mim, era um grupo de heróis que jogava com Dorval, Mengalvio, Coutinho, Pelé e Pepe no ataque, com Gilmar no gol, com Zito no meio de campo, e com Lima em alguma posição. E me lembro de nomes como Dalmo, Mauro, Cejas, Ramos Delgado, Carlos Alberto, Clodoaldo, Toninho, Abel, Edu, Kaneko, Joel, Manuel Maria, Rildo, Cláudio, Oberdã, Lula, Antoninho, Athiê. Todos de um grupo que vinha de algum ponto de um mítico mundo de fantasia onde não havia derrota. Suas façanhas eram cantadas em prosa e verso pelo meu radio. Em minha memória mais marcante, o Santos podia estar perdendo por dois gols de diferença até os 40 do segundo tempo, que eu ainda tinha certeza --não esperança-- de que acabaria vencendo. Quanta vezes vi isso acontecer!

O que os torcedores "colocam" em seus times que os levam a sentir êxtase e orgulho ou tristeza e vergonha diante de um mero resultado? A psicanálise usa essa expressão, "colocar", referindo-se a sentimentos, papeis ou funções que imputamos aos outros. Quando a seleção joga, até dá para entender: é a pátria em chuteiras. Mas um clube à por que nos apaixonamos por um clube? Clube é um lugar com piscina.

Antes do 7 X 1, duas derrotas que me entristeceram tanto quanto essa: para o Cruzeiro de Tostão, um dos jogadores e homens do futebol que mais passei a admirar quando me tornei adulto, o psicanalista Tostão, provavelmente o cronista mais lúcido de nosso futebol. Depois que o Santos perdeu por 5 X 2 em Belo Horizonte, não conseguindo virar o placar, apesar de minha certeza de que conseguiria, eu não tinha dúvidas de que, na Vila Belmiro, o Cruzeiro ia pagar caro pela ousadia. No primeiro tempo do segundo jogo, na Vila, eu, grudado no radio em Ourinhos, já contabilizava dois a zero para o Santos. Mas Tostão e seus companheiros daquele Cruzeiro impressionante viraram para 3 a 2, com Pelé em campo (nos dois jogos), Tostão marcando sem ângulo, de falta, sei lá mais o quê.

Raramente sinto vergonha diante de uma derrota, mesmo se por goleada. É normal grandes times perderem de 5, de 4. É só lembrar derrotas recentes do Barcelona, do Real Madrid. Perder de muito, de vez em quando, é coisa de time grande, de time que arrisca, que joga no ataque, que não acredita em fatalidades.

Mas 7 precisa de explicação melhor.

E meus sentimentos de depressão e vergonha também.

A primeira coisa que me ocorreu foi que o futebol é uma analogia perfeita da vida, tudo bem que isso seja um lugar comum. Na vida, como no futebol acontece com alguma freqüência a chamada volta por cima. No futebol, mais rapidamente do que na vida e, por isso, ele sempre nos lembra que nada melhor do que um dia depois do outro. As histórias de Fábio Costa e Tevez são casos que gritam para aliviar minha melancolia.

Fábio Costa, um goleiro heróico e o mais feio que já jogou no Santos, deixou o time no auge. Foi para um Corinthians em formação e participou da humilhante série de derrotas para o mesmo Santos que ajudara a formar com Robinho e cia. E Tevez, provavelmente o jogador mais feio de toda a história do futebol, que não bastasse a feiura natural, ainda viveu a tragédia da queimadura quando criança, jogando pelo Corinthians, nunca ganhou do Santos de Robinho. E Robinho ainda lhe mostrou como se dança de verdade (que passista não daria Robinho numa escola de samba ou de rumba!). Pois ambos, Fábio e Tevez tiveram finalmente a sua volta por cima. Contra o Santos e contra a feiúra, que aí está uma coisa que precisa ser superada sempre. Ora, se Tevez e Fábio Costa, depois de amargarem o que amargaram contra o Santos, puderam um dia lavar a alma com um 7 X 1, não há motivo para depressão de carteirinha. A vitória deles lembra com toda a pujança que à nada como um dia depois do outro.

E não é que o Corinthians me perde por 3 X 0 para o fraquíssimo Pumas, alguns dias depois de massacrar o Santos! Os mesmos torcedores corintianos que me gozaram, aceitaram cabisbaixos as minhas provocações (sempre muito leves), como se os 7 X 1 não tivessem existido, como se eles não me pudessem dizer 'lembra dos 7 X 1?'. Eles estavam envergonhados. Por quê? A vergonha dos torcedores pela derrota de seu time continua me impressionando.

Esse assunto está rendendo mais divagações do que eu esperava. Vou continuar na semana que vem para não aborrecer os leitores.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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