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Diário, Depressão e Fama

28/11/2005

Cássia Eller e Luiz Pinheiro, homossexualidade e psicanálise

Luiz Pinheiro e eu temos uma pequena história com Cássia Eller, muito importante para nós. Ele é psicanalista e psiquiatra, compositor de canções, poeta e cantor. E é o irmão que a vida providenciou para este filho único, o pobre diabo que vos escreve.

Ela, todos sabem: Cássia era homossexual sem bandeiras hasteadas e sem fantasmas no armário e uma das cantoras mais originais e talentosas que o Brasil conheceu. Luiz e eu estamos lançando um CD com as nossas canções que ela cantou em discos, shows ou apenas na intimidade do lar. O CD se chama "Cássia secreta", pois revela "segredos", aspectos desconhecidos do trabalho de Cássia, assim como as histórias de nossas canções com ela.

Escrevi sobre Luiz e Cássia na coluna anterior, "Cássia Eller, psicanálise e moralidade", em que abordei assuntos tão delicados e pessoais que foi melhor pedir a opinião de meu parceiro. Luiz explicou-me por email coisas da psicanálise e da homossexualidade, tal como é vista por analistas, coisas tão interessantes e bonitas que resolvi fazer mais uma parceria com ele, a primeira em forma de artigo. Escrevi uma introdução e uma coda, e ele, o meio:

"A questão analítica não é moral e, se há algo moralista, é na pessoa do analista e não na sua função. A função do analista é pesquisar o mundo psíquico do analisando e revelar seu inconsciente. Nem a análise busca a cura. Psicanálise é procura. A cura pode ser conseqüência do método investigativo, mas não sua finalidade.

Quanto à homossexualidade, existem analistas gays nas sociedades, alguns até declarados. A questão da homossexualidade é controversa na psicanálise. Freud, respondendo a carta de uma mãe aflita, cujo filho era homossexual, disse que ela não se preocupasse. Que não havia nada de anormal com o filho. Era apenas uma escolha. E quando detectou tendências homossexuais em uma filha, Freud aconselhou-a a não se casar e a procurar uma companheira.

A homossexualidade em si não é uma questão da psicanálise. Para certos analistas se trata de um diagnóstico psiquiátrico, mas mesmo na psiquiatria, ela deixou de ser considerada doença; foi excluída do CID (Código Internacional das Doenças). O que importa para a análise são os elementos nos quais a homossexualidade pode ter raízes, que são os mesmos na heterossexualidade: narcisismo, estados mentais, tipos de angústias, defesas contra angústias, o quanto de integração ou cisão existe no psiquismo, o quanto há de percepção do outro como um ser separado, o quanto há de simbiose, a capacidade de lidar com frustração, e pensamentos, fantasias etc.

Alguns autores dizem que não há algo que se resuma no termo homossexualidade. O que há são homossexualidades assim como heterossexualidades. O que importa é o caminho que alguém faz para optar por um ou outro objeto sexual. Nesse sentido, há casais heterossexuais tão narcísicos que podem viver fantasiosamente uma relação homossexual, se abordarmos a homossexualidade sob o vértice do narcisismo. Há outros vértices: não podemos nos esquecer, por exemplo, das homossexualidades ocasionais, nas prisões, na guerra, ou nos locais onde o acesso ao objeto de opção está impedido.

Há ainda analistas que preferem o termo homoerotismo para falar de um desejo e não de uma entidade clínica. É menos preconceituoso. O analista não é aquele capaz de dizer o certo ou o errado. Pode apenas dizer que certos estados de mente são mais regredidos ou evoluídos. E mesmo essa abordagem evolucionista é questionável.

A psicanálise é mais perguntas do que respostas. Alguém já disse que a resposta é a desgraça da pergunta, pois mata a pergunta. É complicado falar sobre isso numa coluna de jornal. O risco de ser simplórios, superficiais e reducionistas é enorme."

Mais complicado ainda seria não falar sobre isso. Nunca tocar no assunto.

A gente faz o que pode. Medicina, engenharia, política, psicanálise, todas as ciências e artes humanas só fazem o que podem. Em comparação com as religiões e as ideologias políticas, a psicanálise é de uma humildade franciscana. Mas ela pode algo.

Que saudade de Cássia Eller. Ela não gostava de "psicologizar". Quando se sentia à vontade com suas companhias, vencia uma timidez terrível e conversava com prazer. O método da psicanálise é a conversa. Cássia não fez psicanálise.

Cássia era apenas uma garotinha tentando viver sem limites sua sexualidade.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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