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Diário, Depressão e Fama

05/12/2005

Uma mulher deprimida

Quando esta coluna estreou em março, os temas que me pareciam mais instigantes eram a depressão e a sua ligação com a fama. Como dois lados de uma mesma moeda, a "moeda atualidade", os dias de hoje, os únicos que são realmente nossos. Diário, o terceiro tema de uma coluna chamada "Diário, depressão e fama", então, justificava-se e justifica-se pela intenção de abordar a atualidade, principalmente no que ela toca e é tocada pelas mazelas e pelos benefícios da fama e da depressão.

Entretanto, a surpreendente e vasta imoralidade do partido no governo, o referendo das armas (lembram-se?), o futebol, a morte de Koellreutter, e outros temas que invadiram nossas mentes, fizeram com que o aspecto diário da coluna se sobrepusesse aos de depressão e fama, e ainda que todos os artigos continuassem a tratar de pessoas ou questões famosas com facetas claramente deprimentes ou deprimidas, a verdade é que abandonei um pouco a minha querida amiga depressão.

Eis então que me escreve uma mulher de espírito e texto elegantes, uma leitora anônima, uma não-famosa, referindo-se aparentemente a uma coluna anterior, ou ao nome da coluna, pois que não menciona futebol, nem Cássia Eller, nem homossexualidade e psicanálise, os assuntos dos últimos artigos.

"O mais difícil não é a tristeza, o desânimo, o 'não sentir'. O pior é a culpa por se ter muito (saúde, filhos, emprego, um tanto de dinheiro...) e não se querer nada... ter que lutar toda a manhã para prosseguir e para não ceder à tentação de apenas se deixar levar." (S.)

Sua queixa em relação à culpa é semelhante à que eu fazia há alguns anos, quando decidi-me por algo radical e inesperado (para mim mesmo, é claro). Até então, seguia um plano de carreira artística baseado em minhas canções, em fazer shows e discos, e no sonho de me tornar famoso. Tinha reservado bastante tempo durante a semana para cuidar disso, mas ... não consegui me disciplinar. Uma carreira artística depende de uma dose cavalar de empreendimento executivo, embora muitos achem que dependa apenas de inspiração. Se nem a criação artística vive só de inspiração, imagine uma carreira, que não tem nada de arte e tudo de negócio. Quando vi que não conseguia produzir satisfatoriamente "sem patrão" e que, para sair da cama, precisava de um forte vínculo com pessoas e prazos, resolvi me ocupar não apenas com a música como arte, mas também como educação.

Enchi meu tempo de aulas e consultorias, as mais lucrativas possíveis, e o resultado foi ânimo para levantar cedo, fazer a barba e ir para "os empregos". Volto para casa muito cansado, mas a troca foi boa: cansaço é melhor que depressão. E continuei trabalhando com minhas canções o mesmo tanto que trabalhava antes, ou seja, um pouco. E até vou lançar um disco em 10 de dezembro, aniversário de Cássia Eller, na Fnac Paulista, um disco relacionado a ela, que já vem sendo produzido desde 2002. Devagar e sempre, e com capricho, como convém a um deprimido.

Enfim, sem querer propor que minha receita sirva para você, S., o que descobri é que, às vezes, a gente pode estar no caminho errado, mesmo que seja o caminho dos sonhos acalentados desde a adolescência. Boa sorte e um abraço.

"Hermelino, não resisti a responder. Fico feliz que você tenha achado uma receita legal. O cansaço, quando produto do trabalho e da realização, é ótimo, gratifica. Eu que o diga, são anos e anos de labuta e de muitas receitas testadas. Já dei algumas voltas por cima (e outras por baixo) mas encontrei meu espaço no mundo. Há dois anos abandonei um esquema profissional massacrante e perverso e arrisquei um caminho só meu. Sou uma boa profissional e o trabalho honesto, transparente, principalmente em minha área, traz retorno.

Estou caminhando bem.

Embora hoje talvez optasse por uma carreira diferente, mais light e muito menos tradicional, não posso negar que atuo na área que escolhi. Para você ter uma idéia, ao sair do colegial, prestei um único vestibular, sabia a carreira que queria seguir e qual universidade cursar. Passei e adorei. Vivi a universidade numa época em que os estudantes pareciam mais engajados, mais atuantes (olha a ilusão!).

Casei, descasei, casei de novo, com um cara ótimo, mudei o rumo profissional, tive filhos, ganhei dinheiro... Mas por que de repente bate essa sensação de... nada?! Uma falta de razão, uma falta de porquê, e em seguida a maldita da culpa (se morasse numa favela, passasse fome, apanhasse do marido, não ia ter tempo para ter depressão).

Acho que o cérebro --esse monstro ainda incompreendido-- segrega uma poção mágica que envenena nossa alegria e nossa paz.

Obrigada por se preocupar, e sei que se preocupou, tanto que respondeu, e obrigada pelas dicas. O que valeu mesmo foi ter encontrado seu ouvido, é bem mais fácil falar com um desconhecido, não é? E desculpe pelo excesso de informação e pelo tamanho do email, mas você alegrou meu dia! Boa sorte e um abraço." (S.)

A elegância de S. com relação a seus problemas e bênçãos parece coisa de deprimido bem resolvido, de quem foi além da depressão. Há muitos artistas, cientistas e políticos (como o grande Abraham Lincoln), de quem se diz que a depressão foi a mola propulsora de sua obra.

A depressão pode ser um bem? Sim, pelo menos para quem a prefere a uma euforia vazia. Ou para quem consegue fazer limonada dos limões que a vida oferece. Ou para quem ao menos tenta blefar com as más cartas que lhe caem na mão.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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