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Diário, Depressão e Fama

06/02/2006

A Volta do Cavaleiro da Triste Figura

Parece piada. Até mesmo ocorreu em Portugal. Mas não é, é história real. E se lermos as falas com sotaque português, ela que fica mais engraçada.

No parlamento daquele querido país, um deputado muito religioso (não sei qual a religião) defendia uma lei para estabelecer que as relações sexuais deveriam ter, como único fim, a reprodução. Então, uma deputada lhe pergunta:

"O nobre colega tem filhos?
É evidente, ora pois!
Quantos?
Dois belos rapagões!
Então o nobre deputado não pode tratar da matéria, não tem experiência, só teve duas relações sexuais em toda a vida."

Séculos atrás, na mesma ibérica península, Cervantes atacava macacos fora de seu ramo por meio do mais paradoxal instrumental imaginável: um louco, Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura.

Talvez o traço mais genial desse personagem de fama imortal seja que, se, por um lado, Cervantes usa-o para criticar o gosto exagerado pela literatura de cavalaria andante, por outro, dota-o de uma sabedoria capaz de fazer inveja ao mago Merlim.

Na passagem a que me refiro, Dom Quixote já é um personagem famoso dentro do próprio romance, pois suas primeiras aventuras, tendo sido publicadas anos antes, já eram conhecidas por alguns personagens do segundo volume que as leram no primeiro!

Li na tradução de Viscondes de Castilhos e Azevedo (Abril Cultural, 1978), que conserva um sabor de época num português realmente bonito. Há novas traduções que, dizem, são muito boas, com linguagem atualizada, portanto, mais fácil. Na verdade, o que Dom Quixote tem a dizer independe de em qual boa tradução o lemos.

Na passagem mencionada, Dom Quixote se defende de um padre que o desdenha, chama-o Dom Tonto, e o exorta a abandonar sua amada vocação, a da cavalaria andante.

Antes de sua autodefesa, Cervantes já prepara o leitor para certos tipos de padre, os "graves eclesiásticos", "destes que governam as casas dos príncipes; destes que querem que a grandeza dos nobres se meça pela estreiteza dos seus ânimos; destes que, querendo ensinar aos que governam a ser limitados, os fazem miseráveis."

O grave eclesiástico questiona o Dom presumindo-se ao lado da razão:

"Quem vos encasquetou na cabeça que sois cavaleiro andante, e que venceis gigantes e prendeis malandrinos? Voltai para vossa casa e educai vossos filhos, se os tendes, tratai de vossa fazenda, e deixai-vos de andar vagando pelo mundo, a papar vento, e fazendo rir todos os que vos conhecem e vos não conhecem. Onde em má hora é que vistes que houvesse ou haja cavaleiros andantes? Onde é que há gigantes na Espanha ou malandrinos na Mancha? E Dulcinéias encantadas, e toda a caterva de necedades que de vós se conta?"

Um exasperado Dom Quixote responde-lhe:

"As repreensões santas e bem intencionadas requerem outras circunstâncias (...); pelo menos, o repreender-me em público e tão asperamente excedeu todos os limites da censura cordata; porque às primeiras cabe melhor a brandura do que a aspereza; não me parece bem que, sem ter conhecimento do pecado que se repreende, se chama ao pecador, sem mais nem mais, mentecapto e tonto. Senão, diga-me Vossa Mercê: que tonteria viu em mim, para me condenar e vituperar, em mandar-me que vá para minha casa tomar conta de seu governo, e de minha mulher e de meus filhos, sem saber se tenho filhos e mulher? Então, não é mais senão entrar a trouxe-mouxe pelas casas alheias a governar os donos delas, e, tendo-se criado alguns dos que isso fazem na estreiteza de um seminário, sem terem visto mais mundo do que o que pode encerrar-se em vinte ou trinta léguas de comarca, meterem-se de roldão a dar leis à cavalaria e a julgar os cavaleiros andantes? Por ventura é assunto vão, ou é tempo desperdiçado o que se gasta em vaguear pelo mundo, não procurando os seus regalos, mas sim as asperezas por onde ascendem os bons à sede da imortalidade? Se me tivessem por tonto os cavaleiros, os magníficos, os generosos, os de alto nascimento, considerá-lo-ia eu afronta irreparável; mas que me tenham por sandeu os estudantes, que nunca pisaram a senda da cavalaria, pouco me importa; cavaleiro sou e cavaleiro hei de morrer, se aprouver ao Altíssimo; uns seguem o largo campo da ambição soberba, outros o da adulação servil e baixa, outros o da hipocrisia enganosa, e alguns o da cavalaria andante, por cujo exercício desprezo a fazenda, mas não a honra. Tenho satisfeito agravos, castigado insolências, vencido gigantes e atropelado vampiros; sou enamorado, só porque é forçoso que o sejam os cavaleiros andantes, e, sendo-o, não pertenço ao número dos viciosos, mas sim ao dos platônicos e continentes. As minhas intenções sempre as dirijo para bons fins, que são fazer o bem a todos e mal a ninguém."

Séculos depois, a humanidade ainda convive com esses impertinentes macacos fora dos seus galhos em todas as religiões e governos. Semelhantes nossos, precisamos nos distanciar deles por meio do pudor e da dignidade de falar sobre o que sabemos. E de seguir nossa vocação.

Para os deprimidos de carteirinha deve ser muito estimulante ouvir a defesa que o velho ensandecido faz de sua opção pela cavalaria. Cervantes atinge ali a harmonia entre loucura e sensatez, e entre a depressão do herói e o seu ânimo para entregar-se à mais dura profissão da terra, à da inverossímil, irreal e inglória cavalaria andante. Dom Quixote só não é depressivo quando de armadura, sobre Rocinante e ao lado de Sancho Pança.

Vejo o Cavaleiro da Triste Figura (que prefere, na segunda parte, ser chamado de Cavaleiro dos Leões) como o maior e o mais inteligente símbolo da vitória contra a depressão (e da conquista da fama) por meio da entrega a uma vocação, por mais absurda e insana esta seja.

E como vimos, Dom Quixote não apenas vence a depressão e atinge a fama. Ele é útil bem mais amplamente. Talvez a nobre deputada o tenha lido.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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