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Diário, Depressão e Fama

13/02/2006

Bruna Surfistinha e Ramon, o revisor amoroso

A pessoa mais famosa na internet brasileira é uma ex-prostituta, e é tão famosa que acabei de chover no molhado: Bruna Surfistinha é conhecidíssima mesmo fora da rede. Seu livro é o segundo na lista dos de não-ficção. Só perde para o da fina Danuza Leão.

O traço em comum entre a antiga prostituta e a antiga socialite é que são boas escritoras populares. Afirmar isso também é chover no molhado em relação a Danuza, mas talvez ainda não seja em relação a Bruna, ou melhor, Raquel... esqueci o sobrenome, mas é só clicar no google para descobrir não apenas o sobrenome como a qualidade de seu texto.

O melhor do texto da Surfistinha é a descomplicação. Ela não usa as formas indiretas (as formas indiretas, ela não usa; as formas indiretas não são usadas por ela), e não enrola, vai logo dizendo o que tem a dizer. Você começa a ler e... continua. Antes da fama, até se podia pensar que seu blog fizesse sucesso por ela narrar explicitamente suas aventuras eróticas. Agora, ela fala do sucesso e da fama recentes e a narrativa continua gostosa.

A Surfistinha comete vários erros de português, como "à todos". Mas o escritor, o talento para narrar, independe da gramática. Basta ter o que dizer, que o cara diz de um jeito legal. Seu namorado, estudante de direito, conhecido dos internautas como Pedro da Bruna, sabe muito mais gramática do que ela, mas não sabe escrever. Ela publicou um texto dele no blog, uma carta que lhe escreveu. Não dá pra chegar à metade. A pretensão constrange. Vai ver o cara não é enfadonho no dia-a-dia, mas algumas pessoas, quando pegam na caneta... sentem uma coisa...

Talento é uma das duas maravilhas da natureza, um inexplicável presente dos deuses. Com talento e vocação, a pessoa parece não precisar de estudo. Seria ótimo, se fosse verdade, mas não se aplica a todas as áreas e a todas as situações. Até que tudo bem para músicos e escritores populares, jogadores de futebol, apresentadores de TV, modelos etc. Agora imagine um cientista talentoso e que atua em sua área de vocação, mas sem estudo: cano à vista.

Lula na presidência e Luxa no Real Madrid são dois talentos bem direcionados na vocação que, de certa maneira, se perderam. Eles constrangem quando abrem a boca e acho que sofrem por sua formação precária. Um perdeu o emprego internacional e o outro vai perder. Imagino o Luxa na Espanha, o país com o sistema educacional mais evoluído do Ocidente, dando entrevista em portunhol. Se em português, já é duro agüentar, imagine a dor nos ouvidos espanhóis. Ainda bem que Lula só fala em português nas viagens internacionais: ninguém entende português.

Não me entendam mal: como no caso da Surfistinha, quando falo de Lula e Luxa, não me refiro apenas ao saber falar, à gramática, mas também à formação geral, que inclui alma e caráter, coisas profundas que vêm à superfície quando abrimos a boca para falar. O que se aprende em casa e na escola (e no divã). E, evidentemente, não se trata de apontá-los como culpados ou vítimas. Aqui, são apenas exemplos famosos para ajudar a gente a pensar.

Por isso tudo, amo os professores, e gosto de ser um, se não talentoso, pelo menos, com vocação. Dizem que os imperadores japoneses se curvam diante de apenas uma classe de gente: os professores. Se não é verdade, deveria ser. Deveria ser no mundo todo, principalmente, nos países mais pobres.

Entre vários presentes, esta coluna me deu um professor de português. Meus textos saem às vezes com os erros de português produzidos por minha formação imperfeita e pela pressa, erros que o corretor automático que usamos nem sempre capta. E isso não pega bem para quem adora criticar a péssima formação do presidente e de outros petistas.

Mas eis que surge Ramon, meu revisor afetivo, um corretor sentimental, amoroso e não automático. Encasquetei, por algum motivo, que Ramon é do norte ou nordeste, mas isso não importa. Por favor, dêem uma olhada nesta vocação para professor, no cuidado (afetivo e técnico) com que ele faz seus reparos.

"Caro Hermelino, antes de tudo, parabéns por suas colunas; entre as últimas, parabéns em especial por 'Cássia Eller, psicanálise e moralidade'. Sabe uma coisa que lamento? Não sou adivinho, mas tenho a impressão de que muitas pessoas (a maioria delas, eu diria) às quais a leitura daquela coluna seria útil não são seus leitores. Sei que é um mero pressentimento, mas fico pensando que leitor de Hermelino Neder ou qualquer um que fez psicanálise ou se sentiu deprimido um dia não faz juízos morais tão rígidos.

Bom. Mas estou escrevendo pra dizer que, na sua coluna de 7 de novembro, você escreveu "radio" duas vezes sem acento no "a" (linha 13 do sétimo parágrafo e linha 8 do nono parágrafo). Fiquei me perguntando se teria sido uma traição do teclado ou se você pretendeu fazer um uso "culto e arcaico" da palavra "radio" sem acento mesmo (que eu nem sei se seria cabível no contexto). Na mesma coluna, na penúltima linha do sétimo parágrafo foi escrita a expressão "quanta vezes" (faltou um "essezinho", portanto, em "quanta").

Não sei se você se lembra, mas eu sou aquele aparente chato (mas já esclareci: sou seu fã de carteirinha) que, dia desses, "corrigiu" uns errinhos de acentuação em uma coluna sua, e você me respondeu, carinhosamente e com bom humor. Pois é. Queria, hoje, agradecer-lhe. Lê-lo também é útil --entre outras coisas-- para a ampliação do vocabulário. É que na sua coluna de hoje ("7 x 1, parte 2") você fez uso, mais de uma vez, das palavras "benção" e "bençãos", como oxítonas. Como só conhecia ambas como paroxítonas, com acento no "e", pensei que tivesse havido erro de acentuação, mas constatei, após uma olhadela no dicionário (ao qual recorro mesmo quando estou deprimido) que a forma sem acento, conquanto em desuso, é admitida, sim. Ela é, inclusive, a mais antiga, e foi justamente dela que se originou a forma acentuada, atualmente em uso."

Além de correto, o texto de Ramon é bom e fluente. Não preciso editar nada. Outro dele:

"De fato, em colunas anteriores, havia oxítonas seguidas de pronome não acentuadas. Acho que é o maldito do pronome que atrapalha. Os "lo", "los", "la" e "las". Eles devem ser tratados como os "alegrinhos" da vida: é só fazer de conta que eles não existem (risos). As palavras ficariam, então, "criá", "posicioná", transformando-se, pois, em oxítonas, e aí a regra é muito simples: devemos acentuar todas as oxítonas terminadas em "a", "e", "o" e "em". Que saco, não? Quem foram esses malditos que inventaram essas normas da Língua Portuguesa?!"

Os malditos, não conheço. Mas que bom ter conhecido o bendito Ramon: amor e conhecimento. Não preciso de mais nada. All you need is love. And knowledge.

Ramon não é famoso. Ele deve ser um daqueles caras populares, que todo mundo quer bem.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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