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Diário, Depressão e Fama

06/03/2006

A peste do frango: sua hora chegou

Talvez você morra em breve, caro leitor, de gripe aviária. Você. Eu, não.

E talvez você sinta o mesmo em relação a mim ou a qualquer outro semelhante: que a gripe do frango seja apenas mais uma entre tantas desgraças que acontecem com os outros, mas não com você. Melhor ainda: que seja algo que só acontece bem longe de casa, para aqueles amarelinhos chegados a um tsunami ou pretos mergulhados em briga de facão e AIDS. Ou até mesmo para os irmãos de New Orleans, mas nunca no seu bairro, na sua rua, na sua casa.

Semelhante meu, meu irmão: essa é apenas uma das superstições que carregamos, talvez no próprio DNA. E é um dos motivos para que usemos disciplinas rigorosas, como a ciência e a matemática, na busca por uma verdade confiável. Outra superstição é a da auto-complacência: eu não sou preconceituoso, você é. Eu não sou corrupto, você é.

Você leu "A peste", de Camus? Eu comecei mas não terminei. Deixei o livro de lado para tomar um ar, para me recuperar das primeiras páginas e ele... sumiu. Foi o único livro não terminado que marcou minha memória para sempre. Camus ataca virulentamente a superstição do mal destinado ao outro, nunca a nós mesmos.

Numa cidadezinha (provavelmente da França), um homem aparece morto e o cadáver tem um aspecto esquisito, doentio. Em seguida, surgem outros cadáveres semelhantes. As autoridades da cidade, entretanto, não se convencem de que possam estar diante de uma epidemia, de uma peste. E vão deixando o tempo passar, dando-se desculpas como "agora é fim de semana", "estamos sem transporte para levar o corpo à capital". Adiam providências urgentes. Agem como zumbis, morto-vivos, teleguiados por alguma programação genética ou atávica que os protege de ver a realidade. Qualquer coisa diferente da razão, algum sentimento profundo, uma noção visceral, como se noção (da área do conhecimento) pudesse ser literalmente visceral.

Como será que o livro acaba? Há mais de vinte anos adio retomar e terminar a leitura. A perda do livro foi um ato falho.

Esse sentimento de que a desgraça está destinada ao outro é profundo. E estúpido. Mas fazer o quê? Nascemos com essas programações defeituosas, que podem ter sido necessárias um dia, quem sabe, na pré-história. Talvez hoje nos atrapalhem mortalmente, mas não haja o que fazer com programações inerentes ao humano, que não podem evoluir mais. Olha mais uma, baseada em sermos seres de interpretação: acreditamos que o que sentimos seja a verdade. Dotados da capacidade de interpretar a realidade (ou limitados por ela), viemos da fábrica sem um chip que nos lembre a todo o momento que estamos sempre interpretando. Há quem nunca sequer pensou nisto: que o que ele pensa, só ele pensa, que a realidade, que a cadeira à sua frente é apenas uma interpretação pessoal, que ela só existe daquele jeito para ele. Que, para seu irmão gêmeo, a cadeira da frente é outra.

Acreditamos que a tradução que fazemos do que os nossos sentidos nos trazem seja a... realidade. Pobre Kant. Também, quem mandou escrever difícil? Quantos seriam capazes de interpretar sua crítica à razão pura?

É pior ainda quando se trata de convicções: nossa interpretação vem revestida da verdade! Judeus e palestinos não duvidam de sua interpretação do conflito. Ocidentais e mulçumanos também não, em relação às suas civilizações. Casais em pé de guerra, torcedores envolvidos em briga, adversários políticos, ninguém se lembra de que o que sentimos diante de qualquer coisa ou situação é apenas uma interpretação pessoal da coisa ou da situação. E que se tomarmos tal interpretação ao pé da letra, sem questionarmos impressões, sensações e sentimentos, o próprio pensamento será também apenas uma interpretação pessoal. Até o que nos é inculcado, acabará como uma interpretação, pois mesmo a cultura passará pelo crivo da interpretação pessoal. Não nos lembramos, ou não nos informamos, de que a verdade absoluta só existe na matemática. De que nem na ciência ela existe. E que mesmo a matemática apresenta paradoxos.

O ministro da saúde já disse que é impossível impedir que o vírus aviário chegue ao Brasil. Mas tenho ouvido que não precisamos nos preocupar, que só pegaríamos a gripe se o frango espirrasse na nossa cara. E que a humanidade não contava com o antibiótico para combater a gripe espanhola. Essas declarações anti-alarme não me sossegam, pois para cada uma, me ocorrem dezenas de questões, imediatamente: antibiótico não é para combater bactérias? Gripe não é causada por vírus? O que me sossega é saber que Deus é brasileiro.

Dia desses, vi a entrevista de um médico americano, especialista em epidemias, no programa da famosíssima Oprah Winfrey. A grande preocupação do especialista não era exatamente com a bird flu, como eles chamam por lá a gripe aviária, mas, sim, com qualquer pandemia: os EUA e o resto do mundo não estarão preparados para uma pandemia. Kofi Annan discursando na ONU disse algo do tipo "já vimos o que acontece quando faltam leitos nos hospitais e, quando milhões de pessoas ficam sem alimento, sem água, sem remédios". Oprah mostrou esse trecho de seu discurso sobreposto a imagens de corpos estendidos pelas ruas. E o especialista voltou à carga para explicar que o problema numa pandemia não é apenas para quem fica doente. O grande mal é que tudo, absolutamente tudo, se altera num quadro desses: os setores de energia, transportes, alimentação são geridos por... pessoas. Milhares delas doentes e faltará tudo. E o que o governo dos EUA está fazendo para se preparar para uma pandemia do frango? Zero.

Acabamos de assistir ao vídeo que prova que Bush sabia do Katrina, o furacão que devastou New Orleans. Ele não tomou providências. Pediu para rezar. Que depressão. O idiota não sabe que Deus é brasileiro? Só nós podemos rezar, sua besta cavala. Mas nem precisamos: a natureza é linda, não há furacões, terremotos e vulcões.

Para provar seu ponto, o especialista fez algumas analogias entre uma pandemia e o Katrina. Numa delas, lembrou que New Orleans precisou, num certo momento, que caminhões com carroceria refrigerada ficassem estacionados na entrada da cidade para estocar cadáveres e alimentos que corriam o risco iminente de apodrecer. O governo pagou os caminhoneiros e eles atenderam ao chamado cívico. Resultado: faltou alimento em outras partes do país, que eram abastecidas por caminhoneiros.

Pandemia é isso: caos, falta de tudo. Parece que há uns 160 mil respiradores artificiais nos hospitais dos EUA. Só 160 mil. Muita gente vai ter que se abanar. Quantos respiradores tem o Brasil? Nem sei por que fiz essa pergunta: Jesus vai descer e fazer o milagre da multiplicação dos respiradores artificiais.

Com a gripe do frango, disse ainda o especialista, morrerão primeiro os jovens com idade em torno dos vinte anos, pois eles têm o sistema imunológico mais acelerado e isso é fatal no caso desse vírus. Não entendi bem por quê. Mas o problema é justamente esse: a falta de informação. O ministro disse que o vírus vai chegar e... mais nada.

Numa conversa rápida, minha mulher e eu, movidos pelo amor e temor por nossa filhinha, pensamos em providências simples como um sistema de alerta com código por cores. Quando atingisse o branco (cor do frango), todos os que não estivessem infectados deveriam ficar em casa e sair na rua apenas com máscaras cirúrgicas, que já teriam sido distribuídas previamente para a população em postos de saúde. O exército deveria estar preparado, com barracas e hospitais de campanha. Todo prédio ou bairro ou quarteirão deveria ter uma Brigada do Frango preparada para os casos suspeitos. Mas claro, a gente falou só de brincadeira, porque não somos especialistas e sabemos que o vírus, quando chegar por aqui, vai achar tudo tão lindo e maravilhoso que sofrerá uma mutação benéfica: para brasileiros, ele só causará uma cocegazinha no nariz.

O medo dos especialistas (não daquele que deu entrevista anti-alarmista nas páginas amarelas de Veja) é a mutação do vírus. Na hora em que o vírus, modificado, puder ser transmitido de pessoa a pessoa pelo ar... Não sei se todos sabem, eu aprendi quando passei a me vacinar contra gripe num centro médico particular, que a maior preocupação da Organização Mundial de Saúde não são a AIDS, o câncer, a malária, o colesterol etc. É a gripe! A prosaica. Porque ela pode ser transmitida pelo ar. Um vírus letal transmitido pelo ar: o sonho de Nostradamus. A OMS mapeia paranoicamente vírus de gripe ao redor do planeta. Que adianta, se nem os EUA e a Europa dão o exemplo?

Recebi uma mensagem de um leitor da Alemanha justamente nesses dias que ando pensando em como Deus foi grande ao nos tornar invulneráveis ao vírus do frango. Diz Herbet Sangion: "já elevaram o estoque de medicamentos destinados à distribuição para a população em caso de pandemia. E isso, aqui na Alemanha. Havia medicamentos para 8% da população. Subiu pra 20%. Não sei quantos teriam condições de comprar medicamentos por aqui, mas uma coisa dessas aí no Brasil seria uma tragédia." O cara está há tanto tempo fora do Brasil que já pensa como alemão. Herbie continua: "A gripe aviária chegou a Baden-Württenberg. No Brasil, eu nem tinha medo dela, já li do JP Coutinho que estavam exagerando muito com essas pandemias. Mas aqui não se fala em outra coisa no noticiário. Trouxe própolis e cápsulas de alho daí. Espero que seja meu trunfo!"

Como é bom poder pensar apenas na Alemanha do hexa. Se há duas coisas que não dão margem a interpretações pessoais é 1) que somos os melhores do mundo em futebol, e 2) que peste é coisa de estrangeiro.

Só bolei o título agressivo e escrevi uma primeira frase apontando um dedo para o caro leitor para chamar sua atenção e, pegando uma carona nas asas do frango, ficar mais famoso. Se o leitor for brasileiro, não precisa se preocupar, mesmo que more nas Filipinas ou na Alemanha.

Durma em paz, Herbie.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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