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Diário, Depressão e Fama

27/03/2006

Carandiru nos Jardins

Há alguns dias, o escritor Fernando Bonassi, que escreveu o roteiro do filme "Carandiru", de Hector Babenco, visitou a escola em que trabalho e falou para nossos alunos adolescentes. Fez um grande sucesso com os alunos e agitou a semana de nossa ilha de bom astral. Bonassi só não é mais famoso porque sua profissão talvez não permita. De qualquer maneira, "Fernando Bonassi, escritor" puxa 9.500 citações no Google. É engraçado quando leitores dizem que sou famoso: puxo umas 500 citações num dia bom.

Mas o assunto hoje não sou eu (o que é uma pena). Na verdade, o assunto são vários: a profissão de escritor e a de professor de português, a literatura, a justiça com pesos e medidas diferentes dependendo de classes sociais diferentes, os brasileiros que falam mal do Brasil, a importância do artista na educação, o amor como remédio contra a depressão, e ainda não sei se até o final do texto outros temas não surgirão. Estou meio Freakonomics hoje.

Leciono, como disse na coluna anterior "Um emprego novo e um velho sonho", numa escola internacional localizada nos Jardins, em que os alunos são alfabetizados em inglês. Bonassi foi convidado por um dos professores do departamento de português da escola. Alguns dos melhores professores que tive na minha adolescência eram de português. Eles me ensinaram como a língua funcionava como linguagem, como um sistema, e despertaram o meu amor pela literatura. Recentemente, quando escrevia a tese de doutoramento, outra professora de português, a quem recorri por socorro, ajudou-me a desenvolver o gosto pela escrita. Esta coluna é uma das conseqüências do meu contato com professores de português. Mas como ia dizendo, não é sobre mim.
Professores de português nos ajudam a ver a beleza que os escritores fizeram com nossa língua minoritária e, por tabela, a nos sentir orgulhosos por eles serem brasileiros. O professor de português trouxe um escritor brasileiro à nossa escola internacional. E o escritor falou em português.

Ele, que já escreveu roteiro de telecurso para a Globo, disse que não acredita em educação à distancia, por televisão. Que a educação não pode dispensar jamais o professor, o contato aluno/professor, pois a educação é, no fundo, o fruto de uma relação de amor entre professor e aluno; às vezes, uma relação muito louca, mas ainda assim, de amor. Lágrimas brotaram nos meus olhos.

Bonassi é desses intelectuais inteligentes que escrevem na mídia (ele, na Folha de papel) e que têm um cacoete: gostam de falar mal do Brasil. Ou talvez não gostem, talvez o façam por hábito, ou talvez, por perceberem que criam polêmica e sensação quando formulam o clichê "num país em que...", em que os três pontinhos são invariavelmente preenchidos com alguma crítica aos cidadãos de terceira categoria que nós somos, ao nosso sistema judiciário, aos nossos políticos (que merecem, ah, esses merecem!), à ganância de nossos empresários (hum... ), à covardia do nosso povo, à corrupção orgânica e atávica que corre em nossas veias, ou etecetera.

Alguns articulistas que falam mal do Brasil atingem a falam. Alguns estão entre os meus preferidos. Muitas vezes, começo a ler a Veja pela coluna de Diogo Maynard. E quando Paulo Francis era vivo, eu comprava jornal religiosamente no dia de seu Diário da Corte, escrito em Nova York, para ser lido aqui na província. Mas o que gosto mesmo em Maynard (e gostava em Francis) é a crítica ao esquerdismo idiota que tomou conta de certa elite intelectual e política brasileira, essa coisa provinciana e atrasada. Nunca gosto quando falam mal do Brasil e dos brasileiros como se estivéssemos condenados ao fracasso por definição histórica e genética. Como não gosto de quem se ufana, de quem diz que nosso povo é trabalhador e pacífico, que somos abençoados por Deus, que o Brasil não tem vulcão, que o Brasil vai ensinar o mundo a ser feliz e etecetera. São os dois lados da mesma moeda, a moeda de nossa especialização para o paraíso ou para o inferno, mas que não corre no mundo real, onde somos humanos, corruptos e honestos, como quaisquer outros cidadãos do mundo.

Falar mal do Brasil tem um charme. Falar bem tem outro. O primeiro é meio punk, agressivo, o segundo, patriota, amoroso. Os primeiros soam impatrióticos para os segundos e os segundos, naives para os primeiros. Só o punk Nelson Rodrigues venceu essa oposição com a criação do "complexo de vira-lata" que o brasileiro teria superado quando Mané Garrincha e Pelé entortaram o resto do mundo, principalmente os europeus, nas copas de 58 e 62. Nelson era patriota sem ser naive. E inteligente: usou o futebol para argumentar, o esporte mais importante entre todos os outros esportes, em que o Brasil começava a despontar como a mais importante entre todas as nações futebolísticas. Se esporte é uma das atividades mais importantes e construtivas do homem, a que merece mais atenção do planeta, mais do que arte e política, mais do que religião, e se somos os mais importantes no esporte mais importante, não seríamos pessoas de terceira categoria, vira-latas.

Uma vez namorei uma filha de imigrante de terceira categoria (aquele que vêm pobre do país de origem) que enriqueceu no Brasil e que, portanto, deveria sentir alguma gratidão por essa terrinha tão cheia de oportunidades. O pai realmente demonstrava algum amor, mas a filha novo-rica, numa viagem que fizemos aos EUA, se referia ao Brasil, falando com americanos, com a expressão "down there", lá embaixo, que eles usam sem conotação pejorativa, apenas para se dirigir ao sul. Quando ela falava, eu percebia um subtexto no down there: o Brasil é uma nhaca, eu sou legal e me destaco da pocilga. De certa maneira, Bonassi e meus ídolos Maynard e Francis sofrem do cacoete de minha ex-novo-rica. Um cacoete que faz sucesso, principalmente com adolescentes que vibram com o lado punk, eles que precisam ser pelo menos um pouco punks para crescer.

Enfim, quando Carandiru em português desceu nos Jardins em inglês, ou, melhor subiu up here, o seu arauto disse coisas contundentes como "os que estão aqui nesta sala, podemos cometer crimes, vocês ou eu, que nunca seremos presos. Porque num país como esse...". Não me lembro da conclusão, mas poderia ter sido "só pretos e pobres vão para a cadeia". Cada vez que usava o clichê, independemente da conclusão, ali, entre professores e alunos de várias partes do mundo, eu sentia por Bonassi um pouco da mágoa que senti por minha ex nos EUA.

Ainda bem que Deus é brasileiro e fez Bonassi dizer outras coisas. Que se casou três vezes, todas as três, apaixonado. Mas que nunca amou uma mulher, como ama sua filhinha. Lágrimas nos meus olhos, de novo. Os escritores não apenas escrevem com timing emocionante, eles também falam assim. E que foi infeliz na infância em família, e como superou, pelo amor aos livros, a herança medíocre. E que pessoas que matam pessoas desarmadas com tiros nas costas e na nuca são menos que pessoas, que o coronel Guimarães do massacre dos 111 presos deveria estar na cadeia. Falou com tanto nojo que achei que ia dizer que o coronel merecia um... tiro na nuca. E contou como trabalhou nos filmes, principalmente em Carandiru e Cazuza. E como tenta manter a independência e a integridade quando trabalha para a rede Globo, como quando foi convidado para escrever a série sobre o Carandiru.
Bonassi mexeu com escola. O professor de português, por tabela, mexeu com a escola também. E eles mexeram comigo. Acho que foi o ponto alto de minha semana, ou não estaria escrevendo sobre eles no meu diário.

E ainda fiquei pensando nestas coisas: esses caras inteligentes, que criticam o Brasil compulsivamente, amam-no? Eles fazem isso por amor para ajudar o país, pra mexer com nossos brios? Ou para ajudar a si próprios, para se destacarem da caterva? Falar mal do Brasil serviria para quê? Elogiar teria algum poder, existiria o poder do elogio, como querem muitos professores, para os da minha escola, the power of praise, desde que não se minta para o aluno, não se elogie falsamente? Apontar o pior sempre é depressivo, mas seria construtivo no caso brasileiro? Ou só o amor constrói? (como dizia aquela dupla de cantores alinhados com a ditadura militar). All you need is love? (como dizia o mais famoso e importante cantor inglês de todos os tempos, na minha humilde).

E ainda: podemos sentir orgulho de nossas glórias desconhecidas do mundo de língua inglesa? Ou seja, podemos sentir orgulho fora do futebol e da bossa-nova? Por exemplo, de Chico Buarque, de Guimarães Rosa, de Oscar Niemayer?

Já percebi que o amor é antidepressivo para mim. O melhor estado de alma em que posso funcionar é o amoroso. Por isso, ser pai e professor me faz bem, pois exercito esse estado mais do que quando componho ou escrevo. Mas o artigo não é sobre mim (o que é uma pena, pois estou louco para me destacar da súcia, da matula, da corja).
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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