Colunas

Diário, Depressão e Fama

01/05/2006

Todas as relações entre pessoas são... pessoais

Já faz um tempo que descobri. Entre pessoas, não existem relações profissionais: todas as relações são, no fundo ou no raso, pessoais.
Quando damos aulas para grupos, podemos observar isso de maneira clara: estabelecemos relações especiais com cada aluno, queiramos ou não, e não apenas com a classe como uma coletividade. É inevitável, como diria o Agente Smith a Mister Anderson, numa das relações mais pessoais que o cinema já produziu, a partir do que deveria ter sido apenas um contato menos que profissional entre um policial e o hacker que ele vai prender. Na verdade, uma relação menos que pessoal, já que entre programinhas de computador, dentro do programão Matrix. Aliás, Matrix é um programão, ou melhor, três programões, mas esse já é outro tipo de relação pessoal, entre mim e os irmãos Wachowski, estabelecida por meio de uma obra de arte. A arte também só estabelece relações pessoais. Apenas pessoais. Mesmo a má arte que provoca nosso desprezo.

È inevitável que sejamos tocados emocionalmente pelo outro ao comungarmos o mesmo espaço e o mesmo tempo. Por ele ser prestativo, bonito, alegre, por ela se parecer com uma ex-namorada, por ser um pentelho, uma deprimida de olhar perdido no sapato. Ou simplesmente por ele... ser. E eu ser.

Ou não nos irritaríamos com uns e não simpatizaríamos com outros. E não teríamos que tomar cuidado com a irritação e a simpatia. Simpatizar, irritar-se, tomar cuidado, tudo coisa de gente humana. Por seu lado, 'relação profissional' soa quase como coisa de computador. Nada me atinge. Eu deleto, shuto down, reestarto e pronto, estou novo de novo. Nunca um aluno adolescente me tirou do sério. Ô.

E agora descubro que estabeleço relações pessoais com cada leitor da coluna. Já era tempo de perceber, de ter percebido, mais de um ano de relações, no mesmo espaço profundo e virtual, onde, apesar da fotinho sorridente, não tenho realmente uma cara para os leitores, assim como eles, mesmo a leitora que mandou a foto de corpo inteiro, não têm corpo real para mim. Sem sorrisos para atrair o olhar, mãos para apertar, olhos tristes para apertar o coração e atrair um sorriso, nos sobrou apenas a ponte de nossas emoções e nossas razões no (dis)curso no papel. Papel, que papel? Tela é lá papel? Talvez seja o melhor.

Vou fazendo meu papel, programado no título meio esdrúxulo da coluna, em que Diário, que deveria ser apenas suporte, se transforma em tema por causa de uma vírgula. Não é que Peirce tinha razão?!: tudo é signo à a vírgula desloca a leitura de um possível Diário Depressão e Fama para o apelo tríplice de Diário, Depressão e Fama que (como Sexo, Drogas e Rock'n roll, sexo, mentira e videotapes, Pai, Filho e Espírito Santo, verdade, justiça e beleza, Moe, Larry and Curly) parece pressupor que um inexiste, dois é pouco, três é que é bom. A vírgula faz o significado, o de diário como um dos três temas, tão importante quanto depressão e fama.

As quatro últimas colunas realizaram um pouco desse diário. Poucos leitores escreveram durante quatro semanas. Nem os citados. Não reclamo não, foi um sossego. Os poucos, disseram coisas como "quando vai acabar essa depressão?", pois interpretaram meu silêncio como sintoma de uma fase depressiva, não como opção 'colunística'. Ou "não agüento mais essa chatice das mensagens. Você vai perder uma leitora de primeira hora, viu?". Alguns se preocuparam genuinamente comigo e ofereceram ajuda para eu sair da crise. Até meus editores na Folha Online, Sérgio, Camila and Mary, se inquietaram com o tamanho dos artigos (quatro páginas, demais para um jornal de rede).

Veja se não são relações pessoais. Um leitor, dos mais queridos, ofereceu sua amizade. Outra, muito engraçada, convidou para um chope. Então, senti que a depressão continua atuante naquilo que mais a caracteriza: não gosto de me mexer, tenho preguiça de sair de casa. Mesmo só sabendo estabelecer relações pessoais, só prezando esse tipo de relação, e investindo nelas toda a verdade de que sou capaz, parece que não tenho energia para me encontrar pessoalmente (!) com essas ótimas pessoas. Parece até que só consigo estabelecer esses novos vínculos por obra da tecnologia moderna, o computador e a rede. Fico aqui em casa, jogando meu charme e meus tentáculos digitais pelo mundo de língua portuguesa. O computador, a rede, o chuveiro elétrico e todos os outros instrumentos que poupam energia humana foram inventados por depressivos, para depressivos. Só podem ter sido.

Este diário, já quase ia esquecendo de dizer, foi inspirado na idéia de blog e, por isso, gosto de me referir à coluna como coluna-blog: editar mensagens de leitores é uma terça parte de sua vocação. Cuidado, portanto: você pode aparecer por aqui.

Parece que o meu barato é a troca real de emoções, razões, afeto e pensamento, pelo meio virtual. Ou seja, porque isso é possível. Sei lá. Sinto falta de Guilherme, o grande comentador de colunas e de Dani-hell, o blogueiro infernal, que há muito não escrevem. Ou seja, se escrevem, tiram meu sossego, se não escrevem sinto falta. Se escrevem longamente, fico cheio (por favor, escrevam curto, se escreverem mais que uma tela de computador, juro que não leio), mas publico os textos longos que escrevem. Enfim, uma coisa assim meio misturada, meio paradoxal, meio... relação pessoal.

Não existem relações profissionais entre pessoas. Ou estas: aluno/professor, artista/fã, médico/paciente. Escritor/leitor. Imagino a relação profissional entre uma prostituta e seu cliente, com os cheiros e fluídos 'impessoais' que permeiam o contato. Ou entre o caixa de supermercado e o pagante, como se o sorriso de um e o emburro do outro não importassem para o resto do dia.

Li que Paulo Coelho (que não li e gostei) preza muitíssimo seu contato com o público. Tira fotos, dá autógrafos, desloca-se para encontrar fãs quando sabe que há um grupo deles por perto. Dizem que Coelho é um gênio do marketing pessoal. A última Exame, com ele na capa, mostra o poder de sua marca no mundo dos negócios. É impressionante. Fiquei pensando se não sou uma espécie de marketeiro pessoal, do tipo invertido, que prefere relações significativas às superficiais que a fama promete. Menos, mas mais. Se não seria por isso que corro o risco de perder leitores com colunas elefânticas escritas por leitores.

Acho que não: eu sempre quis muito.

Um elefante nunca esquece. E eu não falo coisa com coisa.

O tempo falará. Enquanto isso, aproveito, da única maneira motivadora para mim, o espaço bacanérrimo que a Online me concede: arriscando, criando, ouvindo via tela, espalhando segredos, comungando, abusando de gerúndios, me expondo no limite do bom gosto e do bom senso que ganhei ao notar que não existem relações profissionais.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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