Colunas

Diário, Depressão e Fama

08/05/2006

Pobreza, fraqueza e desonestidade

Acompanhei uma parenta a uma delegacia da mulher. Ela foi denunciar os maus tratos físicos que sua filha sofrera numa escolinha infantil. A delegada tentou convencer minha parenta de que não havia acontecido crime com o seguinte argumento: "a professora é uma pessoa simples, de família humilde, não poderia ter feito isso".

Não me contive e perguntei se ela fosse uma pessoa mais complexa, de família mais rica, se, então, poderia ter cometido o crime. A delegada que era evidentemente uma pessoa simples, de família humilde, emudeceu. Sinal de inteligência. Pobres podem ser inteligentes. E criminosos.

As pessoas mais honestas que conheci eram filhos de gente rica. Talvez por ser da segunda geração em diante. Dizem que toda fortuna começou em algum crime. Se for verdade, ricos de primeira geração foram pobres que aprontaram alguma para ficar rico.

Um dos sinais de nosso subdesenvolvimento é uma pessoa atravessando a rua com andar normal, e que de repente sai correndo para fugir de um carro que surge na rua. Geralmente o pedestre é mais pobre que o motorista. O pedestre se submete ao sinal de riqueza, o carro. O motorista não sabe se o pedestre é rico, mas imagina que, estando a pé, deva ser pobre. O motorista não diminui a velocidade quando avista o pedestre. Mesmo sendo o mais rico numa situação dessas, o pedestre sabe que naquele momento é mais pobre e, como todos nós, ele tem um conhecimento profundamente introjetado, desde a escravidão: nossos ricos não querem nem saber.

Uma vez, em Roma, um carro brecou assim que insinuei que atravessaria a rua. E me esperou atravessar sem reclamação ou buzinada. Deu aquele sentimento chato de que existe mesmo o primeiro mundo e de que não fazemos parte dele.

Na escola internacional em que ensino o Hino Nacional, um professor gringo, temido pelos alunos que não sabem que ele chora de emoção quando eles se superam, ensina o que são high standards, padrões altos.

Standard vem de bandeira, dos lábaros que nobres, reis e cavaleiros ostentavam no campo de batalha. Lá vem o rei do standard verde e dourado que lembra a riqueza de seu reino, lá vem o cavaleiro com o estandarte vermelho que recorda sua bravura em combate, lá vem o nobre mais justo e respeitado com seu estandarte azul prateado que arrebata a todos.

Hoje, nossos standards, aquilo com que nos apresentamos no campo de batalha do dia-a-dia, são nossas atitudes. O gringo inglês diz que são boas bandeiras não mentir e não encobrir a verdade, trabalhar duro, e não ferir os sentimentos dos outros.

Uma leitora fez uma "galhofa" com a coluna anterior (sem se esquecer de comentar que o uso de galhofa é uma certidão de nascimento): "que desaforo! Então 'foi um sossego' a ausência dos missivistas? Não passa por sua santa cabecinha deprimida que a depressão pode ser abrangente, agindo sobre determinado espaço, por algum tempo, envolvendo, além do 'rei', os seus leitores? Estes leitores que têm de esforçar-se por escrever, apesar de amarrados nos tentáculos do monstro, sem terem textos já prontos para envio, como você tem os nossos?! E lembre Saint-Exupéry e sua frase inimitável, surrada, usada por gente que nem chega a compreendê-la em plenitude 'Você é responsável por aquilo que cativa'".

Discordo profundamente da famosa frase do pequeno Saint-Exupéry. Sinto-me responsável por quem seduzo, não por quem cativo. Este aforismo, num livro que se tornou tão popular, causa um mal enorme, desorienta, faz confusão entre o sujeito (o que seduz) e o objeto (o que se deixa cativar, sem que o outro tenha feito qualquer coisa para isso). Além de dar munição pra muita gente chata se impor a pessoas mais desenvolvidas, e esconder-se no álibi dado pela frase. Gente chata geralmente é gente fraca, insegura. Que usa da fraqueza para controlar o outro, por meio de cobrança e atribuição de culpa. A força do fraco: você se me cativou... Sai pra lá, o chorão, vá plantar batata e fazer análise (putz, se alguém me escrever para dizer que psicanálise é coisa de rico, desisto de minha missão educadora na coluna).

Caetano Veloso às vezes acerta: "sou a favor dos fortes, contra os fracos e oprimidos".

O fraco precisaria era fortalecer-se, mas não podendo pagar o preço ou não sabendo como, adota esse tipo de "conhecimento" ilusório, aparentemente correto e amoroso. É tão nefasto como um remédio falso. Quem toma, permanece doente.

Perguntaram ao economista americano J. K. Galbraith, morto recentemente, qual dos grandes presidentes a quem tinha servido, ele considerava o maior. Respondeu que era Franklin Delano Roosevelt, entre outras coisas, por tratar-se de um "homem sem uma idelologia pessoal que o controlasse"...

Só os grandes prescindem de ideologia ou de religião, e formam uma ética amorosa própria.

Polícia para quem precisa de polícia. Ideologia para quem precisa de. Religião para quem precisa.

Um filho de Galbraith declarou que o pai teve uma vida plena e maravilhosa. Verossímil.

Galbraith contestou a visão tradicional de que a riqueza de uma economia de mercado é aproveitada por todas as parcelas do país. A solução estaria numa participação ativa do Estado, com a manutenção de um elevado nível de gastos públicos como forma de assegurar bem-estar social e uma distribuição de renda justa. Não entendo patavina de economia, mas isso me parece equivocado. Apesar disso, fui com a cara do sujeito.

Um amigo de um amigo disse que algo dentro de si mesmo o leva a votar no PT mesmo não querendo. Na eleição que o Lula ganhou, esse moço disse que votaria no Lula, mas torceria para que perdesse.

Meu querido amigo André Singer, petista de carteirinha e porta-voz de Lula, escreveu sua tese de doutorado sobre a hipótese, comprovada na tese, de que a ideologia é um dos fatores determinantes de eleição no Brasil. Pelo que me lembro da defesa, outros fatores são o carisma do candidato e a campanha bem conduzida.

Por incrível que pareça, o livro Freakonomics afirma que dinheiro não ganha eleição.

Vou fazer uma operação para tirar um caroço. O caroço vai pra biópsia. O médico vai telefonar para passar o resultado. O medo da morte ainda não chegou. Ando triste com outras coisas, mais comezinhas. Depressão serve para alguma coisa.

Mas ainda bem que tenho plano de saúde. E carro. Será que sou rico, forte e honesto?
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

Leia as colunas anteriores

FolhaShop

Digite produto
ou marca