Colunas

Diário, Depressão e Fama

15/05/2006

Chico, pessoa nefasta?

E então Chico Buarque declarou seu voto a Lula. Imediatamente me mandaram o link da entrevista na Online. Quem mandou? Minha amiga petista, oficorse. Uau, agora você está em boa companhia, amiga. Outro amigo, um dos poucos peessedebistas da tribo, considerou a declaração nefasta. Eu achei... veja bem...

Parece que quando Chico sai daquele seu silencio, que parece de nobre inglês, e solta uma bombinha, explode imediatamente uma bombona. Em 2004, a Folha publicou outra entrevista, dada por ele em Paris, em que dizia "quando você vê um fenômeno como o rap, isso é de certa forma uma negação da canção tal como a conhecemos. Talvez seja o sinal mais evidente de que a canção já foi, passou". Tal declaração, vinda de quem veio, e correndo pelo telefone sem fio que é a relação mídia/público, foi ganhando um tom apocalíptico e motivou a pergunta que cansei de ouvir de alunos, amigos e até de desconhecidos, quando descobriam que eu era músico: "a canção morreu?"

Canção, tal como a conhecemos, é o gênero artístico que associa uma melodia a um texto, conhecido como 'letra'. A partir do século XVIII, quando a geração de Bach e Rameau acabou por definir a harmonia de acordes (grupos de no mínimo três notas diferentes), o acompanhamento passou a ser parte tão fundamental da canção, que as definições o incluem: letra, melodia e harmonia (a seqüência de acordes). Ou: letra, melodia e acompanhamento. Gosto mais da segunda, pois abrange o aspecto rítmico do acompanhamento, a 'levada' característica dos gêneros rítmicos. Samba, baião, bossa, valsa, marchinha, marcha rancho, blues, rock, as diversas variantes de pop e jazz etc., cada um deles tem uma levada própria.

Um resumo da ópera, digo, da canção seria "gênero que integra melodia, letra e acompanhamento", o último sendo a base sobre a qual o casal melodia/letra deita e rola, sobe e desce, repousa, voa e, não raro, atinge os píncaros da glória: desde a invenção do rádio, há sempre um punhado de cancionistas e cantores entre as pessoas mais famosas e ricas do planeta. Canção é o que se ouve em 99,99% das rádios. O gênero está para a música e o texto, assim como o futebol, para o esporte. Há antropólogos que afirmam que o homem primeiro cantou e depois falou. A canção (= fala) desses primórdios seria uma espécie de grunhido significativo, em que o significado estava tanto na entonação (musical) do grunhido, como em fonemas muito primitivos, pois a humanidade (se é que se pode usar o termo) não havia ainda codificado os sons da fala. Talvez se o grunhido 'cantasse' do grave para o agudo, significasse uma pergunta; se vice-versa, uma afirmação; se baixinho, soprado ao pé do ouvido, uma cantada. Urgh, bleargh, sssss, uau...

Pois não é que a canção parecia ter seus dias contados depois da entrevista de Chico! E diante dessa perspectiva, a pergunta preocupada "a canção morreu?" tinha lá sua razão de ser, embora não se tratasse de invasão de país, de genocídio, de catástrofe ambiental: digamos que o fim de um gênero artístico seja equivalente ao fim de uma espécie animal. Como reagir ao anuncio do fim da música, da literatura, do cinema?

O "culpado" por esse pequeno alarme foi o Chico. Culpado entre aspas, pois suas declarações não eram tão assertivas quanto a pergunta que geraram. "Há quem sustente: como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20."

O que ele chama de "canção como a conhecemos" é a dos compositores de sua geração, a MPB, e os pops internacionais. Ora, abandonar modismos é histórico e natural: não se escreve mais ópera no molde lírico, mas o musical americano e inglês é seu descendente direto. E quem ainda faz canções como os trovadores europeus? Quem ainda faz marchinha de carnaval? Canção de protesto? Alguém supor, no entanto, que o gênero chamado canção possa estar ameaçado pelo advento do rap é acreditar em profecia de Mãe Dinah. E nem quero usar o argumento definitivo de que o próprio rap é uma espécie de canção, que foge da melodia, ok (pra poder falar mais abobrinha), mas a usa em pontos expressivos.

Escrevi longamente sobre isso num artigo chamado 'Canção imortal', ainda inédito. Um dia, se rolar, publico-o aqui. O de hoje é sobre essa outra bombinha que Chico soltou, a de que vai votar no Lula. Aposto que terá efeito apenas naqueles eleitores ideológicos, que votariam em Lula de qualquer maneira. E o efeito é este: eles se sentem agora mais aliviados, à vontade para assumir o voto, por causa da companhia ilustre. Todos os outros amantes de Chico ficarão, no máximo, enciumados por o cancionista ter esquecido seus candidatos. Mas não mudarão o voto. Ou seja, a declaração é um traque.

Que houve comoção, houve. Claro, Chico é o maior letrista brasileiro em todos os tempos --e um dos maiores do planeta: não fosse o português a língua marginal que é, Chico estaria ao lado de Cole Porter na história da canção imortal. Além disso, ele vem esbanjando a simpatia mais carismática que brotou na classe musical brasileira, desde "A banda". Porém, apesar das letras impecáveis e do carisma, o voto de Chico não arrastará a vitória para o líder da banda podre. Há uma razão geral: artista não ganha eleição. E uma específica: o apoio antigo, sistemático e idiossincrático de Chico à ditadura cubana soma-se agora ao da defesa (ideológica) de Lula. E o resultado mais palpável é um Chico folclórico.

Parece-me natural que artistas, e Chico mais do que ninguém no Brasil, possam e devam transitar por áreas diferentes, compor canções, escrever romances, peças de teatro e soltar bombinhas em entrevistas. Se até eu, que um dia sonhei ser ele, posso assinar uma coluna... Portanto, não proponho que Chico se atenha às canções, e deixe a literatura, como quer o escritor Marcelo Mirisola, que o chama engraçadamente de Chico 'Sambinha' Buarque. Ainda que eu tenha considerado seu primeiro romance um estorvo e, por isso, desistido dos que o seguiram. Ou que deixe de dar declarações. Gosto principalmente das audiovisuais, para saborear o humor e a inteligência que carrega a música de sua fala e a luz dos olhos seus. Mas posso curtir e até me deixar seduzir sem, no entanto, perder o senso crítico: artistas não têm poder no mundo real, em curto prazo; têm no plano simbólico. Fazem-nos pensar, refletir, escrever artigos. É legal, bacana e em longo prazo. Ponto.

O problema das declarações políticas de Chico é que são ideológicas. E ideologia é coisa irracional, nos leva a interpretar situações com a mesma trava no olho que faz um religioso ver milagres. Distorções graves da realidade política são típicas de mentes escravizadas por ideologias. São como as opiniões de torcedores de futebol que vêem roubo de juiz onde não há, e sempre com o sentimento de que o seu time foi prejudicado. São como a lei que impede a mulher de se emancipar em certas religiões, e como o mandamento que proíbe pais de recorrerem a transfusões de sangue em filhos moribundos em outras.

Ideologia para quem precisa de ideologia. Religião para quem precisa de. Polícia para quem precisa.

Chico não é o primeiro gênio que apresenta reflexões políticas questionáveis. Ezra Pound, poeta norte-americano, era anti-semita e apoiou o nazi-fascismo. Foi preso por crime de alta traição à pátria, considerado insano e internado até quase o fim da vida. Punição exagerada: artistas não têm esse poder todo de influenciar pessoas (embora, sim, de fazer amigos e inimigos). E, no entanto, Pound foi o principal responsável, ao lado de James Joyce, pela reformulação moderna da poesia e da prosa. Divulgou gente como T.S.Elliot, William Carlos Williams e James Joyce, e teve profunda influência pedagógica. Mas sua posição política... vai entender. Fascista e anti-semita: é mole?

No Google: Pound, 1.550.000 entradas; Chico, 2.180.000; Wagner, 3.970.000. (euzinho: 805, putz, 305 a mais, desde a última vez!)
Outro esquisitão foi Richard Wagner. Escreveu ensaios anti-semitas que prejudicaram profundamente sua imagem durante todo o século XX, apesar da música maravilhosa que compôs. Pudera: o nazismo usou-o como ícone da superioridade da música e do intelecto alemães, e o contrapos a outros compositores e músicos, como Mendelssohn, que era judeu. Wagner atacara a influência de judeus na cultura e na música alemãs. Foi reabilitado recentemente e apresentado em Israel. A humanidade demora, mas um dia, faz justiça, relativiza.

Enfim (que estou cansado e você também), não concordo com as pessoas que, vendo Lula como eu o vi no artigo "Lula é sub", condenam Chico por suas opções políticas. Um artista como ele traz tanto bem para a sociedade com sua obra, que pode se dar ao luxo de ser excêntrico, até mesmo nefasto, ou melhor, nefastinho, que é o máximo que um artista consegue de mal com suas declarações. Nada comparável ao mal atingível por um personagem como o da letra de 'Pessoa nefasta', de Gilberto Gil, outro que será recordado como grande compositor e não como persona política ou pessoa nefasta. Ainda que ambos tenham se posicionado ao lado de gente de 'astral que se arrasta tão baixo no chão, que tem a aura da besta, cara de cão, gente que precisa ir a pé até a Bahia, dobrar os joelhos, cair aos pés do Senhor do Bonfim e pedir que retirem a cobiça, a preguiça, a malícia, a polícia de cima de si'.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

Leia as colunas anteriores

FolhaShop

Digite produto
ou marca