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Diário, Depressão e Fama

12/06/2006

No Dia dos Namorados, homenagem a mim mesmo

- Então tá: nunca serei totalmente sincero com minha mulher, nunca terei com ela a honestidade e a confiança que tenho com meus melhores amigos. Com você, por exemplo. Estou condenado a mentir para ela até o último dos meus dias, a esconder papeizinhos, a temer que abra meus e-mails etc. E ainda mais: conviverei com o fracasso de nunca ter sido honesto com nenhuma mulher que amei, nem as que vieram antes, nem as que, quem sabe, vierem depois dela. Vislumbrou?

- Você gosta de radicalizar. Por que encarar isso como questão moral? É simplesmente operativo. Pra que provocar o ciúme do outro? O que se ganha com isso?

- O que se ganha, o que alguém ganha, eu não sei. Eu ganhei um alívio... é tão bom dizer "tirei a mentira de cima de mim". Entre meus relacionamentos mais próximos, com amigos, sócios, pais, filhos, alunos, até com colegas, o mais mentiroso era o que tinha com a pessoa com quem adormeço todos os dias. A pessoa que me dá mais prazer e a que mais me inferniza. Quem sabe agora ela me infernize menos: seria outro ganho. A minha mulher... Fica quieto um minutinho, vamos fazer um minuto de silêncio para pensar nesta expressão: minha mulher, minha mulher. Sacou? ... Ainda não passou um minuto, mas tudo bem, agora pense na tragédia de que eu escapei: ela era a única pessoa íntima para quem eu mentia.

- Quer dizer que agora, quando você encontrar uma ex-namorada, que está muito gostosa, se você disser a ela "putz, como você está gostosa", quando chegar em casa, vai correndo dizer para sua mulher: "encontrei a fulana. Putz, ela está muito gostosa, falei que estava gostosa, ela me deu um beijo e eu fiquei de pinto duro".

- Claro que não, né, sua besta. Mas se ela perguntar o que eu fiz hoje, vou dizer que encontrei a fulana. Se ela perguntar como ela está, eu vou dizer que está muito bem. Se ela perguntar se eu fiquei com tesão e, se eu tiver ficado, vou dizer que sim, que fiquei.

- Ah, só se ela perguntar?

- Claro, né, você quer que eu chegue confessando como um católico idiota, como se eu não tivesse a noção da dor que o ciúme provoca? O que decidi é não me dar mais o direito de encobrir aquilo que é importante para ela. Se ela quer saber, deve ser importante para ela. Se perguntar, vai ouvir.

- Quer dizer que se ela perguntar se você teve algum caso nesses anos de casado, você vai contar?

- Vou.

- É muito trouxa mesmo.

- Cara, por que você pode saber quase tudo de minha vida e minha mulher não pode?

- Porque eu não durmo com você.

- Esse é o ponto: sou mais íntimo dela do que de você, mas só no plano físico. Espiritualmente, tenho mais intimidade com você. Não te parece um pouco estranho, não?

- Claro que não. O que ela tem a ver com seu tesão por outras pessoas? Isso não diz respeito a ela.

- Tudo o que ela quiser saber sobre mim diz respeito a ela.

- Sabe o que está me parecendo? Que você é um puta dum ciumento que quer controlar a mulher. Então inventa essa merda de moral da verdade total entre casados só para poder cobrar que ela não minta para você.

- Não tomei essa decisão por ela. Tomei por mim.

- Tá legal. A "Veja" da semana passada trouxe um teste sobre ciúmes. Numa das questões, a alternativa que pontuava mais alto, a que indicava alto nível de ciúmes, era "contar toda a verdade para o cônjuge". Quem fala toda a verdade o faz porque é ciumento e, portanto e provavelmente, é um falso moralista, um inseguro que se faz de superior com finalidades espúrias, por exemplo, a de controlar o outro por meio de sua verdade pró-ativa.

- Você sabe que sou ciumento. E eu sei que me obrigar a dizer a verdade tem vários efeitos colaterais. Mas e daí? Não é por eles que tomei minha decisão. Você se protege do ciúme de sua mulher mentindo, omitindo. Tá feliz assim? Ok, bom pra você. Mas, meu amigo, você não fica um dia sem fumar maconha. Por que será?

- Mas o que o cu tem a ver com as calças?

- Sei lá, tem razão. Mas lembra aqueles meses que a gente saiu com aquelas casadas que eram amigas? Elas pareciam umas profissionais do adultério, lembra? A minha só ligava de celular pré-pago para não deixar rastro na conta telefônica. A sua conferia você todinho antes de sair do motel, perguntava o que você ia contar em casa, ela te treinava, lembra?

- Ã-hã, e daí?

- Esses dias, me lembrei disso e comparei nós quatros a esses políticos corruptos que vivem na fantasia de impunidade. Não é infantil? Eles se escondem em suas mentiras e nas dos cúmplices e se sentem tão especiais que acreditam que nunca serão pegos. Claro, no nosso caso, se fôssemos pegos, o pior seria uma separação, nada de cadeia, execração pública etc. Uma briga conjugal, talvez até uma surra ou um esculacho de um marido ciumento, o que é raríssimo. Mas veja, a base de nossa segurança era a mentira. A gente mentia em casa com medo de que nossas mulheres ligassem para os maridos delas, e elas, vice-versa. Ou seja, de repente nos vimos numa situação em que tínhamos segredos com duas estranhas. Lembra das embromações que a gente se dizia para justificar? Lembra do papo delas, da sensação de esquisitice? Eu já tinha sido pego pela consciência, nem precisava de polícia. Você não acha que fomos meio corruptozinhos, não?

- Pelo amor de Deus, você sente tudo exagerado. Na época, você ficou bem eufórico. Você vive nesse diapasão mais alto. Agora está eufórico com essa filosofia que contraria todo o bom senso, que nega a realidade dos sentimentos. Está comprando o inferno conjugal.

- Antes o conjugal que o inferno interno. E eu não estou eufórico, estou deprimido, nem sei por quê. Essa é uma decisão que veio da tristeza. Mas é melhor assim. E depois não esqueci que vivemos aprendendo, se encontrar algo melhor, eu mudo, ué. Mas, neste momento, quero fazer uma revolução na minha vida pessoal. Quantos homens você conhece que vivem dentro dessa mentira instituída, coletiva e cultural chamada casamento? E quantas mulheres? Pô, não quero mais essa merda de vida mentirosa, esse peso. Não minto mais para ela e ponto. Juro por Deus. Ela pode abrir minha carteira, minha agenda, meus e-mails quando quiser, duas vezes por dia, se quiser. Se vai encontrar alguma coisa? Sei lá, também não quero passar a vida vigiando demais os meus próprios passos. Se encontrar, vou conversar com ela, vamos ver no que vai dar. Tomei essa decisão porque percebi que minha passagem pelo planeta... que coisa, se eu não me toco, poderia viver toda a minha vida mentindo para... o meu amor. Isso era uma possibilidade totalmente concreta: fui educado para isso.

- Todos temos direito à nossa intimidade. Você está abrindo mão da sua para roubar a dela.

- Conheço esse argumento e também outros parecidos: "isso não diz respeito a ela", "todos têm algum segredo, é normal", "se você admitir, ela vai se vingar", "negue, negue, negue sempre". Ouvi alguns de gente inteligente, mais velha, outros de meus pais, ou de profissionais, médicos, terapeutas. De psicanalistas! Sei que quem fala a verdade logo vê como essa atitude é poderosa. A pessoa passa, se não a controlar, a ter uma força considerável no seu meio. Mas não é por isso ou, pelo menos, não é só por isso que tomei minha decisão.

- Você sabe que é controlador, não sabe?

- Quem não é? Mas não foi esse o motivo que me fez mudar de atitude. Estou te falando. Já te falei: ela era a única pessoa, entre minhas relações íntimas que não merecia a minha verdade. Muita loucura, muita inversão de valores. A minha mulher. Pensa: a minha mulher.

- Você nunca ouviu dizer que uns casinhos extra-conjugais são revigorantes para o casamento?

- Não é disso que estou falando. Sabe o Roberto? Uma vez, ele me disse que a maior homenagem que um homem pode prestar a outro é lhe dizer a verdade. Pensei nessa frase uns três dias e tirei duas conclusões: 1ª, sim, é verdade, é uma grande homenagem, e o sentido da homenagem está em que podemos mentir, em que somos praticamente inescrutáveis e, portanto, se opto por revelar o que se passa no meu íntimo, isso pode ser um presente precioso. E 2ª, mais do que ao outro, expor minha verdade é uma homenagem a mim mesmo. É como se eu dissesse para Deus e o mundo, para a natureza, para o cosmos, para qualquer pessoa "eu posso ser como sou", ou "não sei se você vai me aceitar, mas eu me aceito, não preciso me esconder de você. Nem de mim mesmo". Esses são os meus motivos, principalmente o segundo.

- Sei.

- ...

- Mas você pode ser você mesmo sem precisar se expor a ninguém.

- Então tá.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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