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Diário, Depressão e Fama

19/06/2006

Parreira bebe pra caramba?

Ronaldo é fenômeno porque deu a volta por cima em 2002, depois de todas as tragédias físicas e emocionais que sofreu, e fez de sua história um roteiro perfeito para cinema (americano, o melhor do planeta, com final feliz e grandioso), na opinião de Walter Salles Jr.

Porque se casou com a Cicarelli num castelo de chantili francês e depois descasou em menos de três meses (a melhor piada da época foi produzida em casa, por minha mulher: antes do casório, quem o achava feio --eu o acho bonito-- dizia que ele era o Shrek e ela, a Fiona. Quando ela deu o piti no casório, minha mulher veio com essa: "E não é que é a Fiona mesmo? Ela virou ogra!").

Porque depois arranjou uma namorada mais bonita e mais legal que a Cicarelli.

Porque enfrentou os políticos de Brasília com uma altivez nunca vista num homem do futebol, quando fizeram aquele inquérito sobre evasão de divisas e sobre o Luxemburgo (em contato com aqueles basbaques do planalto, Luxa tremeu e parecia um empregadinho assustado, "sim senhor, sim senhor"). Ronaldo deu uma descompostura e chamou de mal-educado um deputado ou senador que o interrompeu: "Eu escutei você falar, será que agora posso concluir sem ser interrompido?".

Porque jogou bem ontem contra todas as previsões (menos a minha, que decidi atrasar a coluna e escrever sobre ele e sua depressão apenas após o jogo para não quebrar a cara. E não posso mais falar de sua depressão).

E, principalmente, para a delícia de todos os que estão enjoados e enojados com esse governo cara de pau, porque disse que o Lula "deve beber pra caramba", em resposta ao demagogo ter tentado pegar carona no "sentimento" popular de que o fenômeno estaria gordo. Em termos de altivez, ele deveria ser o rei do futebol, ele tem postura de família real muito maior que o maior de todos, Pelé. Nunca vou perdoar Pelé por ter dado aquela placa ao Marcelinho Carioca, em que o homenageia pelo golaço que o Carioca fez na Vila, "em cima do meu filho Edinho" (sic). Depois o Edinho se mete com drogas e ninguém entende... Filho de famoso já é deprimente, filho do mais famoso é mais deprimente ainda, e o pai escreve isso numa placa. Faça-me o favor.

Muito nobre o Parreira ter escalado o Ronaldo ontem. É preciso coragem para homenagear o passado de um cara, correndo riscos no presente. Ou então é preciso beber pra caramba.

Quando um sujeito, de quem se espera algo competente, sóbrio ou coerente, apresenta resultado ou comportamento bisonho ou pífio, se diz que "o cara bebeu". Ou "o cara pirou", ou a feiíssima "viajou na maionese", o que é, em si, uma viagem pra lá de grotesca, que só compete com "um beijo no coração" e "estou a fim de ficar entre seus rins", de uma canção do Ira! E ainda há "o cara só pode estar de brincadeira!".

Pois acho que o sóbrio Parreira... bebeu. Ele é o técnico brasileiro mais competente de todas as copas por ter ganhado 1994 com um time mediano. Agora, se bobear, vai passar para a história como o técnico mais incompetente de todas as copas por ter perdido 2006 com o melhor time que o Brasil já produziu depois das duas gerações de Pelé, o melhor do mundo no presente. Se bobear, viajará grotescamente na maionese.

Parreira parece não perceber que o quadrado só é mágico com Robinho.

Mesmo após a Copa das Confederações, em que o quadrado arrasou nossos amados argentinos, principalmente graças ao entendimento de Robinho e Adriano, ainda não tinha ficado tão claro o que finalmente resplandeceu no jogo contra a Croácia: as seleções não vão deixar o Gaúcho jogar. E vão tentar abafar o Kaká também. Portanto, nossos dois centroavantões, que ficaram isolados no primeiro jogo, e em grande parte do segundo, ficarão na mesma solidão nos próximos. O futebol moderno oferece táticas lícitas e ilícitas para anular duas feras no meio de campo e, assim, abortar a criação das jogadas.

Mas como anular ainda um terceiro criador? Quando Robinho entrou, os croatas, em peso sobre o Gaúcho e Kaká, deixaram Robinho solto para armar aquele gol que Adriano perdeu. E, principalmente, pararam de abafar o Brasil. Pararam de atacar, de mandar no jogo. Parecia que tinham bebido a cachaça do planalto.

O quadrado mágico é aquele Kaká, Gaúcho, Robinho e Adriano (ou Ronaldo, ou Fred, pois para entrar aos cinco finais e marcar um gol, como ontem, contra a Austrália, o cara deve ter alguma coisa com o oculto, além de "ser abençoado por Deus", como declarou). Não há sistema defensivo capaz de matar a criatividade de três iluminados, como aconteceu em 58 e 62, com Pelé, Garrincha e Didi, em 70, com Pelé, Tostão e Gérson, e agora acontecerá com Kaká, Gaúcho e Robinho. Nessas condições, basta, lá na frente, um Vavá, um Jairzinho, um Adriano ou um Ronaldo gordo. Até o Lula barrigudo, bêbado pra caramba, empurraria pra dentro.

O Parreira pirou. Tenho certeza de que ele decidiu voltar para a seleção depois de perder aquele campeonato para o Santos de Diego, Léo, Elano, Renato e principalmente Robinho. Em 2002, o Corinthians de Parreira já havia ganhado dois campeonatos e ia levar o terceiro, não fosse o Saci Santo e Iluminado. Alguns dias, depois daquela final lavadora de égua, em que Robinho, sem Diego, levou o Santos ao primeiro título importante em 20 anos, Parreira, que vinha sucessivamente negando o cargo de técnico da seleção, reassumiu. Se eu disser que previ isso, vão dizer que bebi. Mas juro: depois de uma entrevista em que ele falou sobre a maravilhosa geração de jogadores que tínhamos naquele momento, juro que previ que Parreira, que nunca está de brincadeira, assumiria a seleção. Ele dava entrevistas em que dizia que nosso time poderia ser comparado ao dream team de basquete americano que arrebentou nas Olimpíadas de Barcelona: Jordan, Jonhson, Byrd, Barker, Rodman etc. Pensei, esse cara vai voltar para a seleção, não vai perder a oportunidade de se tornar o primeiro técnico brasileiro a ganhar duas vezes a copa do mundo.

Robinho inspirou Parreira, pois jogou na sua cara que não há defesa, mesmo as armadas por ele, que segure o talento. Portanto, quando o genial ex-jogador e comentarista, o psicanalista Tostão afirmou que Parreira não levaria Robinho, eu não acreditei em Tostão pela primeira vez.

Para não entrarmos de novo na depressão de 50 e 82, basta Parreira se lembrar do que o inspirou a voltar ao cargo de técnico mais desgastante do mundo, o cargo que pode levar um cara a se tornar o deprimido Lazaroni, que se esqueceu do time que o inspirou em 90 (o que ganhou 94) e escalou outro, ou se tornar o técnico mais importante e famoso do futebol mais importante do mundo, desbancando a priori Felipão e Luxemburgo (que vem aí). Não se diz que se bebe para esquecer? Parreira deve estar bebendo pra caramba.

Eu não tinha nascido em 50, mas em 82, a depressão foi tanta que a única coisa que consolou Arrigo Barnabé e eu foi compormos uma valsa, já que bossa, maracatu, rock, baião nem passavam por nossa cabeça após Sarriá. Começamos uma valsa linda, mas tão deprê, que paramos no meio do caminho e tivemos que solicitar a Eduardo Gudin e Roberto Riberti que a terminasse. Chama-se Lenda.

Parreira está entre a depressão e a lenda. Em 94, o José Trajano, que o chamava de pé de uva, o desprezou e o atacou tanto, tal como a maioria dos jornalistas esportivos, que, mesmo não morrendo de amores por suas táticas depressoras, fui tomado por aquele sentimento de solidariedade de quando vemos um semelhante covardemente atacado. Torci fervorosamente por ele. E por Branco, considerado velho e gordo, mas que me lavou a alma naquela falta contra a Holanda.

Agora, que saudade da alegria da Família Scolari, de 2002. Que vontade de ver a ousadia de Luxemburgo, que não deixaria nunca, em nenhuma partida inteira, Robinho, Cicinho e Juninho Pernambucano no banco. Estão dizendo que o Robinho é tática para o segundo tempo, quando o adversário já está desgastado, como se ele fosse apenas um rápido como Basílio, que recentemente enlouquecia os adversários do Santos no segundo tempo. Robinho é gênio, e o quadrado só é mágico com ele. Esse pessoal bebeu, pirou, viajou na maionese.

Eu não estou de brincadeira, estou deprimindo com essa seleção que poderia me encantar, lavar minha alma, dar de quatro de novo na Argentina na final, mas que fica tocando melancolicamente a bola na defesa, porque não consegue trocar passes e brincar de bobinho com o adversário no ataque. Um time como esse sofrer sufoco de Austrália e Croácia é brincadeira. Essas seleções não sairiam da defesa se a mágica do quadrado estivesse em campo.

Não sei o gosto fino do técnico-pintor se apaixonou pelos vinhos de uva alemã. Mas já é deprimente demais que o homem no segundo cargo mais importante do Brasil beba pra caramba. Se alguém puder remeter esse texto para o Parreira, por favor, aperte o botãozinho aí embaixo. Gostaria muito de dizer-lhe que, se há males que vêm para bem, como a contusão de Ricardo Oliveira que trouxe Fred para a seleção, há também bens que vêm para mal, como o entrosamento de Ronaldo e Adriano no primeiro gol contra a Austrália.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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