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Diário, Depressão e Fama

26/06/2006

O Santo Graal e a condição humana

Dessa atual polêmica, espúria e desgastante, entre a igreja católica e o Código da Vinci não sobra nada que preste. Nada que advenha dela pode nos ajudar, pobres diabos, a viver melhor a nossa vida. Não serve nem para os anônimos deprimidos, nem para os famosos eufóricos, e vice-versa, os anônimos eufóricos e os famosos deprimidos.

Quem seguir os sermões de padres que vociferam contra o livro e o filme, e ignorá-los, perderá um bom produto de ficção, de entretenimento, pois ambos são apenas e nada mais que isso: bom divertimento. Quem não seguir os sermões por acreditar que o barulho indicaria algo revolucionário nas obras, que justifique tanto medo e tanto ódio por parte da Igreja, não encontrará nada que lhe sirva para aliviar (o Graal) ou piorar (o demo) as angústias comezinhas de sua condição humana.

A obra que melhor traduziu o Graal foi o filme Excalibur de John Boorman. Nela, o famoso rei Arthur revela-se o único homem capaz de retirar Excalibur da rocha e o filme dá a entender que o poder vem da terra, de onde Excalibur, a espada do poder é retirada. Pois rocha é terra. Arthur, jovenzinho, apesar do feito, tem ainda que mostrar a vários cavaleiros que é digno de ser rei. E em que rei Arthur se transforma! Une toda a Inglaterra e a governa com sabedoria e justiça.

Então, o país floresce, como só floresceria uma terra que escolhesse seu próprio rei. A Inglaterra vive seu apogeu e Arthur constrói Camelot e dentro da cidade, um castelo e dentro do castelo, uma sala de reunião para seus cavaleiros e dentro desta sala, um mesa redonda onde todos serão tratados igualmente. O círculo como símbolo de igualdade. O grande rei senta-se entre seus pares, e sente-se grande, único, especial. Pudera.

O melhor cavaleiro de Arthur, o invencível guerreiro Lancelot, que é derrotado apenas por Arthur e Excalibur, transforma-se no maior aliado de sua luta e em seu grande amigo. Quando Arthur resolve se casar é a ele que o rei confia a escolta de sua noiva, Guinevere. Como se sabe, Lancelot e Guinevere trairão Arthur no futuro, depois de tentarem evitar a atração mútua que os arrasta ao adultério contra o amado rei, marido e amigo.

Aqui, este artigo se justifica: um dos mais famosos reis de todos os tempos entra em depressão profunda, causada pela traição de sua mulher. Então, o que faz esse grande rei, antes de entregar-se irremediavelmente à depressão arrasadora? Ele toma Excalibur e a enterra entre os dois corpos nus que descansam na relva, sob uma árvore, depois do ato sexual.

Com a espada na mão, não os mata, não os fere, mas fere a sim mesmo, pois ao enterrar sua espada no chão, de volta à terra, o rei abre mão de seu poder. Diante da possibilidade de uma vingança sangrenta, este grande homem, opta por uma vingança simbólica, a de expressar aos amantes a enorme dor e perda que eles lhe causaram. Arthur separa os amantes com seu poder, à custa de seu poder, mas nos destrói. Apenas lhes diz claramente: "vocês acabaram com minha energia, minha força".

Arthur se recolhe à sua depressão, Lancelot "pira", se transforma num Antonio Conselheiro, um messias anunciante do fim dos tempos, e Guinevere entra para um convento. Sem governo, a Inglaterra mergulha nas trevas, o povo passa fome e torna-se vulnerável a seus inimigos.

Morgana, meia irmã de Arthur, aproveitando-se de seu estado, embriaga-o e engravida-se dele, gerando Mordred, o filho incestuoso que junto à mãe tentará, mais tarde, na juventude, dominar o país.

Enquanto Mordred cresce e se prepara para seu nefasto destino, os cavaleiros da Távola Redonda tentam cumprir a última missão dada, em meio a delírios, por Arthur: encontrar o Santo Graal. Todos morrem na tentativa, vários emboscados por Mordred e por Morgana. Apenas um cavaleiro, o menos poderoso de todos, o mais humano, sir Percival, alcança, instantes antes de escapar da morte -- naquele estado de que alguns moribundos voltam dizendo ter visto a luz, um túnel de luz --, a visão de um cálice e ouve uma voz que lhe responde a pergunta "o que é o Graal?" A resposta da voz: "o rei é um com a terra".

Quando Percival volta, sem cálice nenhum nas mãos, e anuncia sua descoberta, Arthur renasce. Ele redescobre que é 'um com a terra': que diabos isso quer dizer? Demorei anos para pensar num significado e ainda hoje tenho dúvidas dele. Mas aqui vai o que consegui: Arthur redescobre que, apesar do destino grandioso que lhe fora reservado, ele ainda é apenas um homem comum, um dos demais na terra, 'um dos com a terra', outro pobre diabo como todos nós. Por meio do adultério, Arthur, em contato com a profunda dor e tristeza de sua depressão, descobre -- com a ajuda de outro homem, não o mago Merlin, mas Percival, -- que está sujeito a todas as vicissitudes de qualquer ser humano, até o adultério.

Quem já viu cinturões de castidade em museus europeus, com suas garras e pontas viradas para fora, na altura da vagina e do ânus, entende o medo que um nobre medieval tinha de ser traído. E não é apenas o medo de sua mulher engravidar de outro e tornar herdeiro um descendente ilegítimo, mas do ciúme puro, pois o ânus também é protegido. Bem, não precisamos ir tão longe no tempo para saber como o homem tem medo da desestabilização que uma traição poderia lhe causar: basta lembrarmo-nos das culturas que escondem as mulheres em burkas e das que praticam o decepamento do clitóris.

Como um homem poderoso, especial, pode suportar a traição de sua mulher? Como ela pôde compará-lo e menosprezá-lo com alguém menor do que ele? Como pode esse homem, ou qualquer outro, deixar de comparar-se com seu rival e sentir que perde nessa comparação, uma vez que sua mulher escolheu o outro e, então, como deixar de sofrer a inigualável dor do ciúme, o sentimento que nos ataca em dois pontos mortais, extremamente dolorosos: no nosso desejo de ser únicos e exclusivos, e na nossa auto-estima.

Entretanto, 'ser um com a terra', se por um lado pode ser visto como algo menor, o ser comum, por outro lado, no caso de Arthur, pode ser visto como uma condição muito especial, a daquele que tirou Excalibur da terra, pois só ele era assim tão 'um com ela'. Ou seja, a traição de sua mulher e a descoberta do Graal não apenas lhe restituem a condição humana, de não-superioridade, mas ainda lhe recordam que, apesar de igual a todos os outros seres humanos, ele ainda conserva algo que é só dele, no seu caso, a vocação para o grande e justo governante que ele é. E que tem ainda uma missão a cumprir: salvar a Inglaterra da tirania preparada por Mordred e Morgana.

O que sempre me pareceu paradoxal nesse mito exemplar é que aprender essas duas lições (1ª, a de que não podemos nos esquecer de nossos valores pessoais, mesmo diante de acontecimentos profundamente humilhantes e 2ª, a de que não somos exclusivos, únicos, especiais, como gostaríamos de ser pelo menos para outro ser humano, nosso cônjuge), que aprender essas duas lições só é possível para grandes homens ou grandes mulheres. Só os grandes não esquecem seu valor diante da humilhação e só os grandes aceitam que não são superiores a nenhum outro ser humano.

A vida é paradoxo. E eu não sou um grande: sou apenas um mentiroso.

E o título do artigo deveria ser "O Santo Graal é a condição humana".
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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