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Diário, Depressão e Fama

10/07/2006

Solidão

Solidão
(Hermelino Neder/Luiz Pinheiro)

Solidão
Pérolas no fundo do porão
Sombra
Sombração
Solidão
Um dizendo sim, outro que não
Um sol
Outro chão
Vou sair
Quando anoitecer
Por aí
Não vou resistir
Vou querer você
Pra mim
Vou voltar
Quando clarear
Nem pensar
Vou querer dormir
Vou tentar fugir
De mim
Solidão
Solidão
Vou tocar você numa canção
Solo
Solução


Minha família vai sair de férias e eu não poderei ir. Muito trabalho, graças a Deus. Graças a Deus? Será que Ele, de sua altíssima onisciência não percebe o terror que tenho de ficar só? Se tenho vergonha de confessar, sim, mas tenho mais horror à solidão, e eu não sou produto de super-mercado para me preocupar com minha imagem embalagem. O sofrimento me dá raiva, como nas efemérides, quando escrevo os artigos mais baixaria que posso. Fico assim, fazendo análise selvagem comigo mesmo em praça pública, o que é uma forma nem tão elaborada assim de auto-agressão, por eu ser tão besta e covarde.

Mas foda-se. Os leitores pensam que o meia-quatro sou eu, afinal! O meia-quatro meio famoso das colunas 64, cuja identidade tento preservar. Pensam que todos os personagens que aparecem por aqui com depressão pesada, sou eu. E não sou, Madame?

Aprendi a escrever com Madame Malu Zoega, uma maga das palavras. Precisei dela durante a sofridíssima escrita da tese de doutorado e aí, como num passe de mágica, ela me mostrou a linearidade e o prazer da prosa. A linha que começa no começo e vai até o fim da linha, diferente da linha das poesias e das canções que começa onde o escritor quiser e acaba onde ele quiser também. A linearidade da prosa que obedece humildemente a linha do tamanho do papel impõe uma linearidade lógica. Era isso, a linha e lógica que me pareciam irritantes, pobres, menores, quando me dobrei a elas, ou melhor, quando me estiquei para elas, deram-me prazer. E esta foi a segunda lição de Malu: brincar com o texto. Tem que ter prazer ao escrever, tesão, se não, o texto não goza, não ri, não chora, não fala e se fala, fala uma merda qualquer. Luiz Pinheiro, o psicanalista, cancionista e cantor, teve dificuldades com seus relatórios para a Sociedade Psicanalítica, pois sempre preferiu a poesia à prosa. Falei "vai na Malu". Pergunta o que ele acha da Malu.

Vou passar as férias sozinho.

Malu me contou que tinha um professor (quem ama os professores aí do outro lado da tela, feche os olhos, esqueça a tela por um segundinho e mande um agradecimento virtual e telepático a todos os grandes professores que passaram por sua vida) que começava uma aula da maneira mais lógica, inteligente e sintética possível. Quando terminava a exposição ele dizia: 'agora pros fracos'. E, então, dava uma puuuuta aula. Chegou o tempo da folia, é aula de brincadeira... era quando o conhecimento afinal se dava na cabeça dos alunos, que é onde ele tem que se dar. Sabe os tempos da 'matéria dada', do professor que dava a matéria e pronto, aprenda quem aprendeu, tchau e bença? Pois é, o tempo passa.

Até hoje, quando não entende algo que alguém explica, Malu pede "explica pros fracos, por favor." E quando, ao dar suas aulas, vai explicar mais miudinho, ela anuncia "agora pros fracos".

Agora vou explicar a letra da canção 'Solidão', ali de cima, pros fracos. No que me incluo, pois ainda não aprendi sua mensagem. Ainda não aprendi que, mesmo sendo apavorante com suas sombras e assombrações, só a solidão me permite ver certas pérolas brilhantes no fundo do porão. Acho que porão é o inconsciente.
Putz, como dói a solidão das separações amorosas quando a gente diz sim, e o outro, iluminado, muitas vezes iludido por uma fantasia ou paixão, diz não. Mesmo que ele se foda depois, naquele primeiro momento, sofre quem diz sim, o que fica no chão.

Deprê, fico em casa. Mas acho que a maioria das pessoas prefere sair ao anoitecer, não resiste a procurar alguém por aí que preencha o vazio que a pessoa querida deixou. E, quando o dia clareia, volta pra casa cansado das euforias e alegrias inventadas para fugir da solidão, e não quer nem saber de pensar em sua própria dor, de refletir sobre si mesmo (acho que é por isso que existem psicanalistas e professores de literatura: para ajudar a gente a pensar no que está sentindo quando sofre, e tentar colocar alguma lógica na bagunça que brota e emerge do inconsciente).

Nem sempre a gente consegue sublimar e depositar todo o nosso sofrimento numa canção, num texto, numa tela, numa meditação, num pensamento de esperança a partir de nós mesmos.

Nós mesmos sozinhos.
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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