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Diário, Depressão e Fama

17/07/2006

Édipo e Nasrudin

O complexo de Édipo é mais famoso que a tragédia de Édipo. Freud queria seu nome gravado em pedra. Conseguiu. Não se pode afirmar, mas, pela detalhada biografia escrita por Peter Gay, pode-se deduzir que Freud tinha um pezinho na depressão. O outro estava fincado firmemente no desejo de ser famoso, de ser um grande homem. Enfim, um pobre diabo como todos nós, que fez sua limonada de dois limões que a vida lhe deu: a melancolia e o desejo de ser mais do que apenas um homem comum.

Apesar de notório, o complexo de Édipo não é entendido pela maioria dos que o citam. Eu mesmo nunca li o texto original. Peço a Ramon, o revisor amoroso, que encomende ao analista (de seu ilustre círculo de relacionamentos) um texto de divulgação científica (pros fracos) sobre o significado propriamente freudiano do complexo complexo. Luiz Pinheiro, que entra em férias, como eu (volto na segunda semana de agosto), não deverá se manifestar dessa vez.

Feitas as necessárias e humildes ressalvas, exponho o que entendi do tema a partir de leituras de segunda mão, conversas com psicanalistas e alguns anos de análise: o complexo de Édipo é uma construção intelectual (um modelo teórico apenas, pois não há comprovação científica) arquitetada para explicar o momento fundamental da infância, talvez de toda a vida: o primeiro em que nossa visão de mundo é fortemente agredida pela realidade, o primeiro questionamento crítico importante que fazemos sobre a percepção fantástica, fantasiosa que, crianças, todos temos da vida.

A finalidade crucial desse acontecimento é a conquista da humildade e, quase paradoxalmente, da segurança pessoal. O édipo é uma lição baseada num trauma. Como uma vacina, que tira do veneno a salvação, o édipo tira do trauma a nossa futura capacidade de suportar frustrações, principalmente as das áreas do amor e da auto-estima.

A lição ou o trauma (quando não se aprende a lição) nos acompanhará e guiará por toda a jornada que teremos em seguida sobre o planeta: uma odisséia para todos, uma tragédia para muitos, para as quais nos preparamos, sem saber que nos preparamos, numa idade em que seria tão bom que tudo fosse apenas sonhos. Paulo Francis, que gostava de repetir que a realidade é melhor do que sonhos, afirmava também recorrentemente que não há época mais triste do que a infância. Talvez falasse da própria, mas, da minha, me lembro claramente do desamparo e da solidão, apesar dos pais amorosos que tive. Dois pezinhos na depressão ou a tristeza infantil é verdade universal, comum a todos?

O trauma se dá quando a criança percebe que aqueles dois que estavam ali só para cuidar dela, dedicar todo o amor apenas a ela, têm um lance entre si. Papai e mamãe têm segredos, têm vida própria e comum, cumplicidades. Então, o pequeno ser, incapaz de racionalizar e usar a linguagem para expressar os sentimentos terríveis que emergem dentro de si diante das novas constatações, descobre que monstro existe, sim, pelo menos um, mas muito, muito assustador, terrível, horrível e, ainda por cima, de olhos verdes. E não consegue nomear o monstro, nem consegue apontá-lo para papai e mamãe e perguntar o nome. Se pudesse ouviria "ora, é o Ciúme. Nenê tá com ciúme, minha coisinha linda tá com ciuminho? Meu anjo, liga não, papai te adora, filhinho, mamãe te ama mais do que tudo nesse mundo".

O amor daqueles dois não é apenas dele. Ele não tem exclusividade, como acreditava e baseava, sem saber, toda a sua felicidade, sua onipotência, seus super-poderes, naquela atenção falsamente incondicional. A auto-estima vai a zero, uma criancinha vive uma desilusão de gente grande. Se tiver condições adequadas para lidar com a percepção brutal, ela aprenderá duas lições básicas: a de que não é exclusivo e que o amor que lhe sobra é suficiente para sobreviver. Se tiver condições adequadas: pais amorosos e capazes de acompanhar o filho nessa desilusão, e, não menos importante, a capacidade de suportar sofrimento com a qual a criança já nasce, algumas com mais, outras com menos, distribuídas segundo a lei de Deus.

(Nasrudin tinha um pacote de balas na mão e disse para um grupo de meninos que estava por perto: Vou dar essas balas para vocês, vocês querem que eu distribua segundo a lei dos homens ou segundo a lei de Deus? Segundo a lei de Deus, a lei de Deus, disseram os meninos. Então Nasrudin deu uma bala para um menino, duas para outro, o resto do saquinho para outro e deixou todos os outros chupando dedo. Eles reclamaram e Nasrudin respondeu: Ora, foram vocês que escolheram a lei de Deus. Igualdade é lei dos homens)

Alguém com o édipo bem resolvido (pelo que tenho visto por aí, outra fantasia) seria capaz da humildade de não precisar ser exclusivo de ninguém, ou seja, seria capaz da segurança de não precisar ser exclusivo de ninguém. E estaria vacinado contra o vírus VERME MONSTRO de olhos verdes.

Dois livros que li recentemente recendem a édipo mal resolvido, 'Memória de minhas putas tristes', de Garcia Marques, e 'O paraíso é bem bacana", de André Sant'anna. No primeiro, um homem de 90, que só transou com putas a vida toda, sofre o nascimento de uma "nova" fantasia amorosa; no segundo, um menino pobre, negro, brasileiro, filho de uma mãe bêbada, vai encontrar no Islã, na Alemanha, a felicidade amorosa das 72 virgens prometidas ao fiel que se sacrificar em nome do Alá da guerra santa.

O édipo não tem idade, endereço, classe social. Rico, pobre, índio, paquistanês, hutu, piauiense, araraquarense, japonês, físico nuclear, ginecologista, Hebe Camargo, Materazzi, Zidane, a perua do Senhor, Bento dezesseis, dezessete, dezoito, Heloísa Helena, Oriana, a petista esclarecida, Angelina Jolie, os filhinhos de Angelina Jolie com Brad Pitt, mesmo os batizados lá naquele país afro-medieval, Michael Jackson, George Michael, Michael Jordan, todos têm, todos passam pelo próprio, e único édipo. Condição humana das brabas, Santo Graal cheio de sangue humano. Quem não o viveu adequadamente quando criança estará condenado a repeti-lo até aprender sua dura lição.

Mil vezes a santidade, a castidade, o heroísmo, as drogas, o vício, a ideologia, o crime, a idolatria, o contrabando de armas na África, a troca de casais, trocar de cônjuge, faustão aos domingos: qualquer coisa é melhor do que encarar o próprio édipo na fase adulta. O édipo é bom de ser vivido quando a gente é criança, antes de pôr aparelho nos dentes.

Pra não pegar sotaque, né?
Hermelino Neder é compositor e professor de música. Venceu vários prêmios nacionais e internacionais por suas trilhas sonoras para cinema. É doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Tem canções gravadas por Cássia Eller e Arrigo Barnabé, entre outros.

E-mail: nederman@that.com.br

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