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Futebol & Cia.

25/04/2002

Sorriso maroto

MÁRCIO SENNE DE MORAES
colunista da Folha Online

Nesta semana, pretendia revisitar o planeta Zobor (veja as colunas anteriores) para fazer mais uma alegoria sobre a profunda crise institucional que atravessa o futebol mundial (Fifa) e, particularmente, o brasileiro. Todavia, ontem à noite, uma história contada pelo irmão de um amigo (com quem assisti a São Paulo e Corinthians), que acabara de acompanhar a partida com a família da namorada, me fez mudar de idéia.

O jovem (de 19 anos), são-paulino roxo, estava todo intimidado anteontem porque assistiria ao jogo na casa dos pais da namorada, que são corintianos. Ciente da estiagem de vitórias de sua equipe contra os chamados grandes do futebol paulista nos últimos tempos, já previa uma catástrofe.

"Já cheguei atrasado porque peguei um puta trânsito no caminho, e todo mundo já tinha jantado. Como um chacal, sentei antes que a sobremesa fosse servida e mandei ver num risoto de camarão com salada. Papo vai, papo vem, e acabamos falando de futebol", narrou o pós-adolescente, ainda tenso, após chegar em casa.

"Tentei evitar o assunto, sabendo que, com o Nelsinho [Baptista] já quase na porta de saída e com a [frágil] defesa do São Paulo, o buraco era mais embaixo. Além disso, nada seria mais humilhante do que ter de engolir o que quer que dissesse durante o jantar", acrescentou.

E ele continuou a descrever uma noite aparentemente bastante agradável até a hora do jogo: vinho tinto, sorvete, cobertura de chocolate, bolo de sei-lá-o-que, cafezinho, uma conversa simpática e despretensiosa com os familiares da namorada _e, acima de tudo, sem deslizes de sua parte. É claro que, para seu desespero juvenil, o crescimento da extrema direita na França, a crise no Oriente Médio e a sucessão presidencial brasileira também fizeram parte do cardápio.

Aí, chegou o momento que ele tanto temia. Exatamente às 21h45, o árbitro deu início à partida. Ufa, primeiro tempo sem grandes emoções, e um 0 a 0 sem compromisso para ninguém. Conversa descontraída no intervalo, a namorada experimenta o vestido que portará no casamento de um amigo (estava linda, segundo seu relato) etc.

Começou, então, seu martírio. Antes de dois minutos do segundo tempo, uma daquelas jogadas que não surpreendem mais os são-paulinos (mas ainda os exasperam): uma bola cruzada da esquerda atravessa toda a área sem que nenhum zagueiro apareça para cortá-la e sobra para Deivid. Rogério Ceni quase faz um milagre, porém o atacante corintiano consegue empurrar para o gol com a cabeça.

Festa na casa da namorada de nosso protagonista. O pai, discreto, tenta conter-se, mas não resiste. O irmão, que nem tinha aparecido até então, chega do quarto com um sorriso maroto estampado no rosto. A namorada, solidária e quase indiferente quanto ao resultado, tenta animá-lo: "Ainda falta um tempão, não?"

Falta. Porém isso só agrava o quadro. E seu suplício foi ainda maior. Antes dos 20min do segundo tempo, pênalti (duvidoso) para o Tricolor. Um frio (ou um arrepio ou um péssimo presságio) sobe e desce ao longo de sua espinha. França, que já perdeu vários pênaltis neste ano, pega a bola e se prepara para cobrar.

"Tentei afastar a uruca e não resisti. Disse em voz alta, 'tem que marcar, Françoaldinho!'. Mas não adiantou. Mais uma vez, ele errou. E bateu no meio do gol. Quase atrasou a bola para o Dida. Isso sem falar no balão do Adriano no rebote. Ali, eu já sabia o que me esperava na meia hora que faltava...", narrou o jovem.

Dito e feito. Sofrimento para os são-paulinos, alguma intranquilidade e a vitória para os corintianos. O pai da namorada, "supergentil", como definiu o irmão de meu amigo, ainda tentou animá-lo, dizendo que o São Paulo tem bons jogadores etc.

"De que adianta ter bons jogadores se, há anos, a gente não consegue um título de verdade", desabafou o jovem. Em seu desespero fanático, ele esqueceu o Rio-São Paulo do ano passado e o paulista de 2000. Todavia, como diria outro amigo são-paulino, na lógica do futebol, 2000 foi "no outro século".

Descontada sua parcialidade de torcedor, é verdade que a equipe do Morumbi não consegue ter uma personalidade definida desde a saída de Telê Santana. Quanto ao Corinthians, só há uma coisa a dizer: Parreira realmente amadureceu como treinador. E, finalmente, conseguiu reunir um grupo de jogadores capazes de seguir à risca seus ensinamentos.

Assim, o Timão é favorito na Copa do Brasil e no Rio-São Paulo. Contudo, como sempre no futebol, qualquer prognóstico é fadado a ser desmentido. Afinal, quem jamais teria imaginado que o Brasiliense chegaria à semifinal da Copa do Brasil e, ainda por cima, aplicaria um indiscutível 3 a 0 no Atlético-MG em pleno Mineirão?

O Brasiliense, quem diria?... Brasiliense de Luiz Estevão, o empresário e ex-deputado do Distrito Federal que esteve envolvido em escândalos de corrupção e passou até algum tempo na prisão. E o bicho dos jogadores (pago por ele) é bem superior a seus salários. Só em nosso futebol brasileiro, no desorganizado e vilipendiado esporte nacional, é que esse tipo de absurdo pode ocorrer.

Se não tomarmos cuidado, logo, Luiz Estevão, Eurico Miranda, Edmundo Santos Silva e companhia criarão uma nova liga para peitar todos aqueles que lhes desagradam. Logo, se não tomarmos cuidado, Luiz Estevão despontará como "empresário de visão" do futebol (brasileiro).

Ah, do tormento esportivo-sentimental do irmão de meu amigo na casa dos pais da namorada, devo-lhes o desfecho. Minutos depois do apito final, a família se reúne na sala para as despedidas. O pai, mais uma vez "superatencioso", termina de contar uma história futebolística, estende a mão para despedir-se do pretendente de sua filha e conclui (com um sorriso maroto): "Desculpe a falta de hospitalidade corintiana!".

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Em alta
A excelente equipe do Atlético-PR, que aplicou uma humilhante goleada de 5 a 1 no Grêmio em pleno Olímpico. É impressionante como o time, que começou mal o ano, conseguiu dar a volta por cima e já está virtualmente classificado para a final da Copa Sul-Minas. E Alex Mineiro voltou a encantar após uma grave contusão.
Em baixa
Mais uma vez, o futebol do Rio de Janeiro. A reunião entre os presidentes dos quatro grandes ocorrida no início da semana foi simplesmente patética. Como dirigentes com um histórico tão pífio no que diz respeito à transparência podem levantar-se em nome desse princípio? É, o poço não tem fundo no futebol fluminense.

No mundo
Destaque para as semifinais da Copa dos Campeões. Sem surpresa, o Real Madrid foi a Barcelona e conquistou uma importante vitória de 2 a 0. A equipe madrilena é fortíssima, mesmo não contando com todos os seus craques. Surpreendentemente, o aplicado Bayer Leverkusen arrancou um empate em Manchester. O segundo jogo deverá ser fantástico.
Nos EUA
Uma curiosidade e um destaque. Primeiro, Bruce Arena, técnico da seleção de futebol, convocou os mesmos três goleiros das duas últimas Copas, fato inédito. Até Tony Meola ainda faz parte do grupo que disputará o Mundial. Segundo, começaram os playoffs da NBA, a melhor liga de basquete do planeta. Vale acompanhar os jogaços dessa fase.

Márcio Senne de Moraes é formado em administração de empresas, pós-graduado em ciência política pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, redator e analista do caderno Mundo da Folha de São Paulo e escreve para a Folha Online às quintas-feiras

E-mail: futebolecia@folha.com.br

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