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Futebol & Cia.

27/06/2002

O ocaso do futebol-arte

MÁRCIO SENNE DE MORAES
Colunista da Folha Online

Desta vez, foi o extraordinário ex-jogador (e ex-técnico) Johann Cruyff que decidiu abrir fogo contra o futebol apresentado na Copa do Mundo. Segundo ele, uma eventual vitória brasileira pode contribuir ainda mais para o empobrecimento do esporte mais popular do planeta.

O ex-craque escreveu, em sua coluna no "Sunday Times", que o pragmatismo brasileiro, se recompensado com o título, deverá fazer com que outras equipes se tornem ainda mais defensivas, ainda mais concentradas em "recuperar a bola" em detrimento da criação de jogadas ofensivas.

Uma coisa é certa: o evento ganhou tal dimensão que, atualmente, correr o risco de perder uma partida pode significar a perda de valiosos contratos publicitários ou a ruína de astros consagrados. Quantas vozes já não se levantam para bradar o fim de Zinedine Zidane ou de Luis Figo, até dois meses atrás craques de talento indiscutível, mas hoje considerados "em fim de carreira".

De acordo com Carlos Alberto Parreira, a importância da recuperação de bola "foi descoberta" na Copa de 66, quando a Inglaterra, do excepcional Bobby Charlton, mostrou uma "pegada" que surpreendeu seus adversários. Ainda segundo o treinador campeão mundial em 94, o Brasil conseguiu vencer em 70 porque a altitude mexicana impediu que as equipes européias imprimissem um ritmo forte de marcação.

De qualquer modo, desde a Copa de 90, na Itália, talvez a de mais baixo nível técnico da história, ficou patente que há cada vez menos espaço para o futebol-arte no competitivo mundo do esporte internacional. Os vazios no campo tornaram-se raros, e o futebol feio, de marcação cerradíssima, impera.

E até o Brasil se rendeu à "evidência". Primeiro, houve a tentativa frustrada de Sebastião Lazaroni de escalar três zagueiros na Copa de 90 para paliar as deficiências defensivas de nossa seleção. Depois, veio o triunfo de Dunga, Mauro Silva e companhia (é verdade que Romário e Bebeto fizeram um ótimo torneio) nos EUA. Ganhamos (nos pênaltis), mas não enchemos os olhos nem dos familiares dos jogadores...

Em 98, a França mostrou lampejos de um futebol mais ofensivo, preocupado em criar jogadas. Todavia não podemos esquecer que a espinha dorsal dos "Bleus" campeões do mundo era composta por dois zagueiros excelentes, Laurent Blanc e Marcel Desailly, por dois meio-campistas defensivos, Didier Deschamps e Emmanuel Petit, e por apenas um homem de criação, o astro Zidane.

Chegamos, então, à Copa da Ásia. Quem em sã consciência diria que houve uma grande injustiça na competição, como as que se abateram sobre a Hungria de 54, sobre a "Laranja Mecânica" holandesa de 74 ou sobre os pupilos de Telê Santana em 82? Talvez o triunfo da Turquia sobre o Senegal pudesse ser lembrado, mas mesmo os senegaleses, que tiveram lampejos extraordinários, sucumbiram àquele joguinho de meio-de-campo, preocupados em não tomar gols.

Também pudera! Tomemos a seleção brasileira como exemplo. Com apenas três jogadores ofensivos (Ronaldinho, Ronaldo e Rivaldo), fica difícil chegar com frequência (ou perigo) à área adversária. Há gente demais batendo cabeça na zaga e no meio, mas, segundo a máxima de Felipão, ao menos não tomamos gols.

Aos senhores do futebol tupiniquim, pouco interessa se os torcedores quase morrem do coração a cada cruzamento na área brasileira, a cada drible temerário de Edmílson ou de Lúcio, a cada passe errado dos volantes. Ficamos quase exclusivamente na dependência de um lance individual, de um raro momento de brilho de um de nossos craques. E, pasmem (!), a tática tem funcionado.

É por isso, aliás, que não deixaremos os gramados asiáticos sem o título. A triste constatação é a de que, ante a penúria de craques e o "retranquismo" vigente, alguns atletas extraordinários bastam para fazer a diferença. Foi assim que batemos a Bélgica, a Inglaterra e a Turquia.

Contra os belgas, Rivaldo, numa virada extraordinária, deu-nos uma vitória muito mais apertada do que deveria ter sido (a Bélgica é, no máximo, o Equador sem Alex Aguinaga). No embate contra os ingleses, tivemos Ronaldinho num dia inspiradíssimo, sendo responsável por dois dos melhores momentos desta Copa. Ontem houve o biquinho salvador de Ronaldo, que, em três lampejos, fez as melhores jogadas da partida. Além do gol, deixou Cafu e Kleberson livres para marcar.

É, o futebol mudou. Não há mais o futebol total da Holanda, nem o virtuosismo da constelação brasileira que se curvou a Paolo Rossi, nem gênios capazes de imprimir um ritmo ofensivo sustentado durante toda a partida (como os brasileiros de 70), nem mesmo a magia irresponsável dos dinamarqueses de 86.

De meu tempo criança, lembro-me de que qualquer joguinho da primeira fase do Mundial tinha vários gols e inúmeras jogadas emocionantes. Infelizmente, parece que, atualmente, o futebol-arte esteja fadado a aparecer como uma estrela cadente, fortuitamente. O que os outros não sabem é que, com isso, os maiores favorecidos somos nós, que temos mais jogadores capazes de protagonizar esse tipo de lampejo.

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Em alta
A boa seleção da Coréia do Sul e seu técnico, o holandês Guus Hiddink. Os anfitriões da Copa não têm um talento invejável, porém jogam direitinho, aplicando uma pressão que confunde seus adversários. Se tivessem um centroavante oportunista, poderiam ter chegado à final, pois o time alemão não é nada disso.
Em baixa
O árbitro egípcio Gamal Ghandour e seus dois auxiliares no confronto entre Espanha e Coréia do Sul. Extenuados por conta da prorrogação disputada contra a Itália, os sul-coreanos só puderam chegar à semifinal graças a três erros crassos do trio de arbitragem, que até parecia realmente mal intencionado.

No mundo
Destaque para a novela mexicana envolvendo o atacante sul-coreano Ahn Jung-hwan e Luciano Gaucci, presidente do Perugia, seu clube na Itália. Gaucci decidiu não renovar seu contrato após o gol de ouro contra a Itália. Depois, voltou atrás. Agora Ahn se diz ofendido e se recusa a voltar ao Perugia.
Nos EUA
Destaque para o bom meia-atacante Landon Donovan, do San Jose Earthquakles. Com ótimas atuações na Copa, ganhou respeito e pode voltar ao Bayer Leverkusen, por onde já passou. Mas, mesmo assim, logo que voltou aos EUA, foi a um jogo de sua equipe e até entrou no final. Simpático o jovem Donovan.

Márcio Senne de Moraes é formado em administração de empresas, pós-graduado em ciência política pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, redator e analista do caderno Mundo da Folha de São Paulo e escreve para a Folha Online às quintas-feiras

E-mail: futebolecia@folha.com.br

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