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Futebol & Cia.

21/02/2002

Dor de dente e futebol

MÁRCIO SENNE DE MORAES
colunista da Folha Online

Atacado por uma terrível dor de dente, tive tempo de acompanhar a ópera bufa em que se transformou a história do próximo amistoso da seleção brasileira e fiquei pasmo. De melhor equipe do mundo, chegamos ao ápice da desorganização e quase não conseguimos arrumar adversário para o próximo teste do time de Felipão.

Aliás, que time? O expressinho que o próprio técnico negligencia para assistir às apresentações dos jogadores que atuam na Europa? Estes, diga-se de passagem, correspondem a mais de 70% da equipe que irá à Copa do Mundo. Falando nela, faltam menos de cem dias para seu início, e a coisa continua preta para nossa seleção.

Mas a honra está salva: enfrentaremos a portentosa Islândia no começo de março. Islândia que jamais disputou uma Copa, que não tem nem futebol profissional. Povo que, de futebol, não entende nada. Islândia que foi otária o suficiente para aceitar tapar o buraco deixado por Colômbia e Chile.

Não, Islândia que aceitou a "deferência" de poder enfrentar a mítica seleção canarinho. Afinal, por exemplo, para o melhor sapateiro de Reykjavik (capital da Islândia) e goleiro da seleção, vir ao Brasil é no mínimo tão exótico quanto a Polinésia Francesa soa para nós.

Buscando minimizar os riscos, a CBF marcou o jogo para Cuiabá, cuja temperatura média anual deve ser ao menos uns 35 graus superior à de qualquer cidade da Islândia. Também, depois do susto tomado contra a Arábia Saudita, nada melhor que uma "baba" para "dar moral à equipe".

É, apesar da ironia otimista, é indiscutível que a situação atual do futebol brasileiro lembra os piores momentos de minha dor de dente. Aliás, será que alguém consegue explicar-me por que não jogamos na quarta-feira depois do Carnaval? Era uma das (parcas) três datas que a Fifa havia reservado para amistosos das seleções que estarão na Copa.

Não, Felipão (ou quem quer que seja que manda nesse balaio de gatos) pensou que conseguiríamos novas datas, que as magnânimas (e milionárias) equipes européias liberariam seus astros para que a seleção de outro país (o outrora temido Brasil) pudesse treinar.

É claro que espanhóis e italianos têm todo o interesse do mundo em que treinemos bastante para estarmos mais entrosados do que eles na Coréia do Sul e no Japão. Será que vivemos em outro planeta? Nem em joguinhos de quintal entre crianças esse tipo de comportamento poderia ser esperado.

Afinal, como expôs o filósofo Thomas Hobbes há centenas de anos, no "estado de natureza", cada um pensa só em si. E pouca coisa nos remete mais a esse estado e ao que há de mais primitivo e passional no ser humano do que as disputas esportivas e, sobretudo, o esporte mais popular do planeta.

Mas tudo bem. De qualquer modo, não faz muita diferença se teremos ou não nossas tão decantadas estrelas internacionais no próximo amistoso, pois uma seleção da Redação da Folha relativamente bem treinada seria capaz de bater a Islândia, país no qual o futebol é levado tão a sério quanto o curling no Brasil.

Mas tudo bem. Nossos dirigentes ainda vivem da nostalgia de nossos tempos de glórias futebolísticas e acreditam que, apesar da desorganização e do descaso, possamos manter a tradição e apresentar um bom futebol. A nós, torcedores, só resta cruzar os dedos e torcer para que as madrugadas de maio e junho não se tornem ainda menos atraentes do que já é esperado.

Além disso, não podemos em nenhuma hipótese negligenciar o talento dos jogadores brasileiros, que são bem capazes de surpreender até os hoje irados comentaristas esportivos e vencer a disputa na Ásia. Para quem não acredita, vale a pena ver a jogada de Rivaldo no gol do argentino Saviola pelo Campeonato Espanhol no último final de semana.

Aliás, a beleza plástica do lance, com direito a chapéu e tudo mais, só corrobora a tese de que Rivaldo tem de jogar dentro da área, como atacante, pois, além de atravessarmos uma crise nesse campo atualmente, ele é muito mais objetivo quando está perto do gol adversário e quando seu faro de artilheiro sente a oportunidade de marcar.

É triste, mas faltam menos de cem dias para o início da Copa e ainda falamos da falta de organização do futebol brasileiro e do descaso com que ele é tratado por nossos dirigentes. Sem querer desempenhar o papel da ave de mau agouro, só tenho mais uma coisa a dizer: quanto menor a expectativa, menor a decepção...

Em alta
O atacante França, do São Paulo, que continua a comer a bola pelos gramados brasileiros. Suas chances de ser novamente chamado por Felipão aumentaram nos últimos tempos com a declarada campanha da Globo a seu favor. Não há um jogo transmitido pela emissora em que Galvão Bueno ou Casagrande não toquem no assunto.
Em baixa
Nossos zagueiros em geral. No passado, pensava-se que a altíssima média de gols de nossos campeonatos se devesse à qualidade de nossos atacantes. Pode ser verdade, mas, atualmente, a razão é bem menos poética: temos defensores de baixíssimo nível, o que explica o festival de gols a que assistimos no último final de semana no Rio-SP.

No mundo
Destaque para a primeira partida de futebol no Afeganistão pós-Taleban, que opôs uma seleção de Cabul a uma equipe formada por funcionários da ONU. Houve até golaço de bicicleta. Mas o corre-corre e a violência ocorridos antes da partida mostram que a população ainda não está acostumada com eventos do gênero. Também, o estádio era usado para execuções públicas até há pouco tempo...
Nos EUA
Destaque para os Jogos Olímpicos em Salt Lake City. A vitória do australiano Steven Bradbury numa das provas de patinação de velocidade foi um dos fatos mais inusitados da história do esporte olímpico. Afinal, ele patinava em última posição até a volta final, quando seus quatro antagonistas caíram e lhe deixaram o caminho aberto. Quem sabe não ocorre o mesmo com a equipe de bobsled do Brasil...

Márcio Senne de Moraes é formado em administração de empresas, pós-graduado em ciência política pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris, redator e analista do caderno Mundo da Folha de São Paulo e escreve para a Folha Online às quintas-feiras

E-mail: futebolecia@folha.com.br

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