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Futebol na Rede

02/05/2005

Vida de jogador: a importância de um título

HUMBERTO PERON
Colaboração para a Folha Online

Muitas vezes, de tanto falar e escrever sobre futebol, esquecemos de observar, comentar, e, muitas vezes, não nos perguntamos o que os jogadores pensam sobre determinados assuntos. Outro dia, conversando com um goleiro, percebi a importância que um título tem na carreira de um jogador e quanto é importante para que ele tenha respeito de seus companheiros de clube. O personagem que me deu o depoimento pouco importa, vale o conteúdo. O relato também vale como homenagem aos arqueiros que comemoraram no último dia 26 de abril o "Dia dos Goleiros".

"Sempre fui um goleiro acima da média. Afirmo isso sem nenhum tipo de modéstia. Desde garoto gostei de atuar na posição. Sempre fui goleiro, não me lembro de mim mesmo jogando na linha, marcando gol. Me encantavam as defesas, a permissão de usar as mãos, os uniformes. Até hoje me cativa a solidão que os goleiros vivem. Se o time faz um gol, ninguém corre para te abraçar. Jogando no gol, o arqueiro só tem uma certeza: ou ele sai como herói ou como bandido. Na minha posição não há meio-termo. O goleiro pode não ter o mesmo esforço físico que qualquer outro jogador, mas o desgaste mental é impressionante. São 90 minutos e um só pensamento: 'eu não posso falhar'.

Voltando a falar da minha carreira. Comecei jogando num time médio, que sempre brigava para, no máximo, ficar entre os oito melhores. Outra vez, vou te afirmar sem modéstia: o que o time conseguia a mais do que isso era sempre graças às minhas atuações. Devido às minhas defesas, o time parava os mais fortes esquadrões da época, mas como não é possível fazer milagres em todo jogo, o time sempre saía no meio do caminho e minhas atuações eram esquecidas conforme os campeonatos chegavam às fases decisivas.

Mas graças a uma atuação muito boa contra o time que era o maior esquadrão e que conseguiu o bicampeonato de um campeonato muito importante acabei jogando nesse time. Aliás, chegando a este clube, tive um dos maiores exemplos de companheirismo de toda minha carreira. A pessoa que me deu mais apoio foi o ex-goleiro titular. Sempre me dava apoio, conselhos.

A minha primeira temporada no novo clube foi sensacional. Logo nos primeiros jogos virei ídolo e referência do time, que era bicampeão e caminhava a passos largos para o tri. Se o ataque não resolvia, todos sabiam que as minhas defesas garantiriam a vitória. Foi assim durante toda a temporada. Até chegar à final.

Seria minha primeira decisão numa equipe de ponta, como titular absoluto. Achei que finalmente me consagraria. Puro engano. Talvez envolvido pelo 'oba-oba' em torno do meu desempenho, não me concentrei como deveria para aquela decisão. Em quinze minutos, já tinha tomado dois gols, ou melhor, dois frangaços. Toda minha temporada brilhante foi destruída em apenas um quarto de hora. É lógico que um time que leva dois gols logo no início, ainda com duas falhas do seu goleiro, tem poucas chances de recuperação. Perdemos o título.

Nunca vou esquecer o olhar dos meus companheiros nos meus frangos. Por mais que eles falassem palavras de incentivo, era nítido, pelos olhos deles, que queriam me xingar e muito. Fiquei desmotivado e acabei me transferindo para um time pequeno, muito fraco, em que tinha alguns amigos com quem eu jogava peladas nas minhas folgas de segunda-feira. Aliás, jogador se queixa do excesso de jogos, mas a primeira coisa que faz quando tem folga é jogar futebol.

Sabia que não faria sucesso no meu novo time. A estrutura era ruim e pouco joguei, pois a equipe tinha um goleiro que já tinha uma história no clube. Em pouco mais de um ano, saí de um time vencedor que buscava títulos, em que era titular, para um time que comemorava simples vitórias.

Pensei em parar. Já estava ficando velho, com alguns anos de carreira, quando recebi um telefonema. O "time grande" me queria de novo. Só que a princípio como terceira opção para o gol, ou para completar o elenco. Sem pensar muito, aceitei e voltei. Como terceiro goleiro, sabia que teria poucas oportunidades. Muitas vezes, cheguei a completar o time de reservas como atacante. De repente, o goleiro titular teve um problema de fratura no nariz e não pôde mais jogar. Agora me sentia mais útil, pelo menos ficava no banco. Depois de mais um tempo, o outro goleiro machucou o joelho e voltei como titular.

Logo na minha primeira partida, passei sem tomar gol. Pronto. Ao longo do campeonato, fui recuperando a confiança e o time também. Conseguimos chegar à final outra vez. Dessa vez, joguei uma partida boa, garanto que não falhei, mas não deu. Na final, erramos por nos preocuparmos demais com o nosso oponente. Esquecemos de jogar e fomos derrotados.

Apesar da minha recuperação, começaram aqueles comentários maldosos. Você é bom, mas. Muitos passaram a me chamar de "pé-frio". Por mais que você tente ficar imune aos comentários, você passa a se cobrar. Quantas noites demorei para dormir pensando nos títulos que perdi. Voltava os campeonatos colegiais, infantis, juvenis e ia somando os fracassos. Me esqueci de que em algumas finais que perdi só fui derrotado por que tinha conseguido chegar à final.

Eu queria e precisava de um título.

Veio mais um ano. O engraçado é que aquela temporada era um mistério para mim. Não sabia se seria aproveitado. Fiquei temoroso de ficar no limbo de novo, ou ter que ir jogar em um timeco outra vez. Após os treinos da pré-temporada, mistério. Eu não sabia se ia ficar, se ia jogar. No último treino antes da nossa primeira partida oficial, fui muito bem. Pena que os principais jogadores e líderes da equipe não estavam. Pensei: eu sou azarado mesmo, hoje que eu arrebento e ninguém me vê.

De qualquer maneira, fui relacionado para a primeira partida. Chegando no vestiário ouvi a pergunta: "você quer jogar?". Já mais experiente, disse na hora: "é lógico". Pronto. Seria a minha chance e eu sabia que não poderia perder. Primeiro eu sabia que tinha que jogar bem, pois tinha dois goleiros no banco que poderiam jogar em qualquer time: o "bicampeão" e o goleiro que tinha se machucado no nariz (aliás outro exemplo de companheiro, não teve um jogo que eu não entrasse em campo e ele não me desejasse um bom jogo).

Para encurtar a história. Chegamos mais uma vez à final. Seria minha terceira final em três campeonatos disputados por "um time grande". Seria a quinta final do time em seis anos. É lógico que já começaram os comentários de novo. Passei toda a semana da final ouvindo os comentários de sempre. Pé-frio, perdedor etc. É lógico, como já disse antes, que em algum momento isso acaba chegando ao seu ouvido.

Na ida ao estádio, senti a confiança de todos. Chegamos cedo e todos se concentraram. Eu já escolado de outras finais, escapei das entrevistas, dos tapinhas nas costas. Fui o último a entrar no vestiário e fui o último a ir para o corredor do vestiário. No campo, evitei falar com muitas pessoas. Na verdade, só falei e ouvi as palavras dos outros goleiros. Veio o jogo e desde o começo já sabia que finalmente eu seria campeão.

A certeza veio quando, ainda no primeiro tempo, eu fiz duas defesas "sem querer". Uma em um chute, de sem pulo, que eu só levantei a mão no reflexo. Outra numa falta em que eu não vi a bola, saltei e ela caprichosamente bateu na minha mão e foi para escanteio.

Mas a minha grande defesa da partida eu fiz de maneira calculada. Faltavam uns dois minutos para acabar a partida, quando o atacante entrou livre pela direita e deu um chute forte, rasteiro e cruzado. Consegui saltar e segurei a bola com a ponta da minha luva. Antes que qualquer atacante pudesse finalizar eu consegui pegar a bola e trazer junto ao meu corpo. Hoje, vendo essas imagens, vejo que tudo aconteceu muito rápido, mas na minha memória parece que esse lance demorou uma eternidade.

Depois dessa defesa, o jogo poderia durar mais um dia que eu não tomaria um gol.

Logo após o apito final, a festa. Lembro dos gritos da torcida, dos meu companheiros me carregando, de eu cumprimentar um a um todos os meus companheiros, da invasão de campo, da volta olímpica. Sensações das quais eu sempre tinha chegado perto, mas que nunca tinha sentido.

Foi o meu primeiro título importante, jamais o esquecerei. Mas, mais do que a festa, esse título mudou minha vida profissional. Após ele, passei a ser respeitado no meio e tive confiança para conquistar uma coleção de títulos incríveis."


Após o depoimento, este goleiro não falou mais nada. Fez um gesto de positivo, virou as costas e foi embora.

Até a próxima.
O destaque   O que deveria ser destaque
Para Santos, Botafogo e Fluminense, que são os únicos clubes que venceram as duas primeiras partidas no Campeonato Brasileiro. Do Santos, essa condição já era esperada, pois o time é um dos favoritos do torneio. Falta melhorar o sistema defensivo. Do Fluminense, também já era esperada uma boa campanha. A grande surpresa é o Botafogo. É claro que o torneio está no começo e o time não vai lutar pelo título, mas, pelo início, é possível a torcida do Botafogo sonhar com uma campanha que faça o time ficar bem longe da zona do rebaixamento. Apontados como favoritos no início do Campeonato Brasileiro, Corinthians e São Paulo só conseguiram um ponto nas duas primeiras rodadas. Por isso, o jogo do próximo domingo entre eles ganha grande importância. O São Paulo de técnico novo, Paulo Autuori, tenta a primeira vitória desde a saída do técnico Emerson Leão. O Corinthians tenta, com seu elenco milionário, suprir a falta de um centroavante na equipe. Mesmo no início do torneio, o perdedor do clássico poderá ficar oito pontos atrás do líder na próxima rodada.

Humberto Luiz Peron é jornalista esportivo, especializado na cobertura de futebol, editor da revista "Monet" e colaborador do diário "Lance". Escreve para a
Folha Online às terças-feiras.

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