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Futebol na Rede

21/11/2005

Futebol de várzea: quase ídolos

HUMBERTO PERON
Colaboração para a Folha Online

Não é novidade a importância do futebol de várzea na cidade de São Paulo. Por muito tempo, os campos construídos nas margens dos rios se transformaram em autênticas fábricas de jogadores. Aos poucos, com o crescimento da cidade, muitos campos foram destruídos, mas, se a várzea não revela tantos atletas quanto até pouco tempo atrás, o futebol amador continua forte. Em um final de semana, são inúmeros jogos com clubes que sobrevivem graças ao esforço de alguns fanáticos que viveram os bons tempos do futebol varzeano.

Talvez, um dos grandes atrativos destes jogos é a possibilidade de, na mesma partida, você encontrar jogadores amadores, atletas profissionais em folga, ex-jogadores consagrados que matam a saudade da bola e atletas que tiveram passagens por times profissionais e estiveram perto do estrelato, mas não conseguiram, por um motivo, explodir na carreira. Alguns desses "quase ídolos" completam seu orçamento, com cachês que recebem de times que precisam de reforços para disputar alguns campeonatos.

Durante quase três anos em meus finais de semana (tarde de sábado e manhãs de domingo), vivi a realidade do futebol de várzea. Como goleiro, foram jogos em todos os tipos de campos, campeonatos, encontros em esquina, algumas confusões em jogos. Conheci quase todos os cantos da cidade graças aos campos de várzea, mas nada me chamava mais atenção do que a condição desses jogadores que poderiam jogar em qualquer clube, mas tinham que jogar nos campos de várzea.

O engraçado é que todos têm o mesmo perfil. Chegam para as partidas com agasalho ou mochila dos times grandes que defenderam. Mesmo longe do preparo físico ideal, eles têm melhor condição física que os demais atletas de final de semana e, em campo, são diferenciados. Sabem se colocar, têm uma visão de jogo diferenciado dos "comuns". Mas depois do jogo, durante o tradicional churrasco com cerveja, adoram contar histórias dos pequenos momentos de glória, dos jogadores que fazem sucesso profissionalmente, mas que foram reservas deles.

Outro dia, arrumando minhas coisas, encontrei um fita cassete antiga, que continha o depoimento de um "quase ídolo", que transcrevo alguns trechos para vocês. (como não consegui localizar o atleta vou omitir o seu nome e os times em que ele jogou)

Eu tive a chance que todos que estão aqui, inclusive você, gostariam de ter. Eu joguei num time grande, fui ovacionado por um estádio inteiro, foi herói em um clássico, fiz gols decisivos em duas oportunidades. Até o "Globo Esporte" fez uma matéria comigo. Não sei se você se lembra.

Eu ainda era juvenil, quando o treinador do profissional me relacionou para se concentrar. Vou ser sincero com você, não sei porque ele me levou para a concentração. Eu fazia alguns treinos com o profissional, mas não fazia nada de especial. Mas como ele estava chegando ao time naquele momento e tinha fama de grande revelador de talentos acho que para manter sua característica ele me mandou para a concentração. Hotel de luxo, papo informal com meus ídolos (que agora se transformaram em meus companheiros), tudo isso é um choque muito grande. Antes do jogo, o treinador veio falar comigo que eu ficaria no banco e só entraria se jogo tivesse fácil, pois não queria me queimar.

Lá do banco, assistia ao jogo como um torcedor, ainda mais quando o nosso time tomou um gol, pois, não tinha esperança de entrar em campo naquela situação. Aos 30 min do segundo tempo, "o professor" me chama. Eu nem ouvi as instruções que ele me passou e entrei em campo. Eu mal tinha entrado em campo, e, de repente, sobra uma bola na entrada da área para eu chutar. Não tive dúvida, enfiei o pé e marquei o gol de empate. Na hora não sabia o que fazer, mas logo saí correndo em direção da torcida. No outro dia lá estava eu na manchete em todos os jornais: "Garoto, salva time de vexame".

O jogo seguinte seria um clássico. Se antes do outro jogo, eu era um desconhecido, agora eu já dava autógrafos (poucos) e algumas entrevistas. E lá estava eu no banco, de novo. A partida estava zero a zero, quando, da mesma maneira, o treinador me chamou. Lá fui eu para campo. Desta vez, entrei mais tranqüilo, consegui dar dois ou três passes certos, pois no jogo anterior eu só peguei na bola para fazer o gol. Faltando dois minutos para o fim do jogo escanteio para o nosso time. O cruzamento foi longo no segundo pau, quando um dos nossos zagueiros conseguiu cabecear para o meio da área. A bola passou por toda extensão do gol, mas ninguém conseguiu tocar na bola, até que eu consegui, com o bico da chuteira, empurrar a bola para as redes. Gol. Agora eu não me contive, fui em direção das arquibancadas, correndo e gritando. O time todo veio atrás de mim comemorando. Fiz o gol da vitória.

No outro dia, não faltaram jornalistas em casa. Televisão, jornais, em um dia eu virei estrela. Me senti um milionário quando recebi o bicho, que eqüivalia a 15 vezes a ajuda de custo que eu recebia como amador.

Com esse repentino sucesso, fui chamado para assinar o meu primeiro contrato. Eu e meu pai, aceitamos na hora o que o clube ofereceu. Agora eu era um profissional e como herói tinha tudo e todos aos meus pés. Saímos do clube e fui comprar um carro. Ali eu pude conferir a minha popularidade. Fui tratado como um rei. E, em poucos minutos, com toda a badalação ao meu lado, deixei dois terços do meu primeiro contrato na concessionária, mas eu estava no começo de carreira e ainda ganharia muito dinheiro. Além disso, tinha os bichos, que ajudariam no meu salário.

Veio, o terceiro jogo como profissional. Outra vez, no banco, entrei, com o placar definido e pouco fiz. Para meu azar, o time começou a vencer e minhas entradas não precisavam ser mais salvadoras. Deslumbrado, eu não me esforçava tanto, pois indo para o banco eu ganhava bicho e o meu salário estava garantido. Comecei duas partidas no time titular, mas fui mal e saí em ambos os jogos.

Em menos de dois meses parece que eu fui esquecido. Parei de dar entrevistas, a torcida parou de gritar o meu nome. Aos poucos, fui tirado do banco e logo depois só participava de uma parte dos coletivos. Fui ficando de lado. Veio as férias e na volta aos treinos eu recebi a notícia que eu estava dispensado. O clube me ofereceu e eu aceitei, que eu abriria mão dos seis meses que eu tinha de contrato para eu ficar com os meus direitos.

Depois disso, ainda joguei mais dos anos sem sucesso, por times da A-2 e A-3. Mas é duro você conviver com a falta de estrutura desses times quando você passou por um time grande. Depois disso, aos 22 anos, parei e fui gerenciar a empresa de pisos do meu pai e graças a um amigo ganho uma grana jogando algumas partidas aqui na várzea.

É uma pena, mas todos os domingos, ao jogar nesses campos ruins e ao comer um churrasco na hora do almoço, eu penso: deveria estar comendo em um grande hotel, concentrado para jogar um clássico e não aqui num bar esperando para ir para casa e ver um jogo pela televisão."

Antes de ir em embora ele ainda completa: "Tive minha chance, mas não aproveitei. Faltou alguma coisa. Talvez, saber o meu valor."

Até a próxima.
O destaque   O que deveria ser destaque
Não dá para não falar do erro de Márcio Rezende de Freitas (felizmente vai se aposentar), que não marcou um pênalti para o Internacional e ainda expulsou Tinga no lance. A falha do juíz acabou deixando o Corinthians muito próximo do título, pois uma derrota para o Internacional obrigaria o time paulista a vencer os dois últimos jogos da competição. Mais uma vez tivemos problemas na entrada de torcedores num grande jogo. Parece que nossas autoridades não conseguem planejar e dar segurança aos torcedores em grandes eventos e fomos obrigados à assistir, de novo (parece que os incidentes da final daTaça Libertadores foram esquecidos), a um tumulto na entrada dos corintianos no Pacaembu, contra o Inter.

Humberto Luiz Peron é jornalista esportivo, especializado na cobertura de futebol, editor da revista "Monet" e colaborador do diário "Lance". Escreve para a
Folha Online às terças-feiras.

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