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Futebol na Rede

07/04/2009

Vida de jogador: o marcado

HUMBERTO PERON
Colaboração para a Folha Online

O futebol não perdoa. Uma simples falha mancha para sempre a carreira de um jogador. Mesmo aqueles que conseguem vários títulos e são titulares de suas equipes ou da seleção brasileira por muito tempo sempre são lembrados pelos erros que cometeram. Algumas vezes, um erro é tão marcante que pode acabar com a carreira de um jogador.

Já faz um tempo, numa das andanças pelo país, encontrei um antigo zagueiro que tinha tudo para ser um jogador de sucesso, mas uma pequena besteira somada com uma escorregada, num clássico tradicional de meio de campeonato, acabou com o sonho de seu sucesso.

Gordo, nem de longe parecendo um ex-jogador, ele me deu o seguinte depoimento.

"Fui direto do time da minha cidade para o juvenil de um grande time. Lá me disseram que eu só não fui direto para o profissional para ganhar experiência. Fiquei por volta de uns seis meses entre os amadores. No começo eu não gostei, mas acabou valendo a pena já que nesse período eu consegui ser convocado para jogar numa seleção de base num torneio no exterior.

Também foi bom porque naquela época o aspirante jogava nas preliminares do time principal, então, aos poucos você se acostumava com grandes jogos e grandes públicos. Além disso, a torcida conhecia os novos jogadores e, como aconteceu comigo, em pouco tempo cobrava a escalação de algum aspirante no time principal.

Em pouco tempo já era titular do time. O elenco era cheio de craques, cobras-criadas. Por isso, apesar de sempre jogar como zagueiro-central, acabei sendo adaptado para atuar no lado esquerdo, de quarto-zagueiro.

Rapaz, estava indo tudo muito bem. Minha foto já aparecia a toda hora no jornal e tinha que esperar o programa das 18h do rádio para ficar dando entrevista até o início da "Hora do Brasil" (19h). A TV já existia, mas não tinha tanto programa quanto hoje. Mas eu consegui ir a uma mesa redonda.

Também comecei a ganhar um dinheiro. Eu era moleque e, é lógico, logo comprei uma beca legal e um carrinho. Por sorte, os imóveis aqui na minha cidade eram muito baratos e eu comprei umas três casinhas, que ainda me dão um dinheiro. É disso que eu vivo. Agora, quando uma casa fica vazia, eu passo necessidade.

Meu filho, que tem um pequeno comércio [um pequeno mercado, onde o depoimento foi dado] também me ajuda pagando os remédios e me dando algumas coisas, como roupas e comidas. Mas eu não gosto disso, pois ele tem a mulher e os quatro filhos para criar.

Voltando ao dia em que eu meu mundo acabou. Era o meu primeiro clássico, já tinha uns dez jogos como titular. Como eu já te disse, o time era cheio de jogadores experientes, mas só um veio falar comigo. Me disse para eu não inventar e não ter medo de dar um bico na bola, já que o campo estava molhado.

Fomos para o jogo. Não vou mentir, eu estava um pouco nervoso. Na primeira bola, dei um bico para o lado. O Pacaembu todo me vaiou. Você vê como é. Hoje o cara dá um chutão e vira herói. Mas naquele tempo não se admitia muito que um jogador de time grande, mesmo zagueiro, ficasse dando bico. Acho que isso me abalou um pouco e essas vaias ficaram nos meus ouvidos.

Como o gramado estava muito encharcado, a partida estava ruim. Ninguém queria jogar e o empate sem gols era tudo que os dois times queriam.

Até que veio um lançamento longo. Era por volta dos 40 minutos do segundo tempo. Fui na cobertura do lateral e dominei a bola perto da entrada da grande área. Mas logo apareceram o centroavante e o ponta do adversário na minha frente. Eu deveria ter dado um bico e terminado a jogada. Não, traumatizado pelo lance do começo do jogo, fiz a besteira de levar a bola para o meu pé esquerdo, ela escapou um pouco do meu controle e, na hora que eu fui dar o pique para não perder o lance, escorreguei.

Então não teve jeito. O ponta pegou a bola, ficou de frente para o goleiro e fez o gol, 1 a 0. Perdemos por minha causa. Na hora, senti que tinha feito besteira, mas não imaginava o tamanho.

No vestiário ninguém veio falar comigo. Os boleiros, que nas entrevistas falavam para os repórteres que esse tipo de lance poderia acontecer com qualquer um, me olhavam como se eu fosse um ladrão. Pelo menos meio bicho eu fiz eles perderem e naquele tempo uma gratificação em clássico, mesmo com o empate, já dava para pagar as contas do mês.

Fiquei sozinho ouvindo os torcedores do clube e os conselheiros pedindo para a diretoria me mandar embora. Mais uma vez pensei isso fosse apenas por causa do calor do jogo, no dia seguinte todo mundo esqueceria.

Voltamos para treinar no clube na terça, depois de todos os jornais acabarem comigo na segunda. Teve jornalista que falou que eu era um irresponsável e que deveria voltar a capinar.

Antes do treino, ainda no vestiário, o diretor de futebol, o cara que mais dava tapinhas nas minhas costas, veio falar comigo e disse que o médico do clube iria anunciar que eu tinha me machucado e não iria jogar no domingo. O treinador e os outros jogadores nem me dirigiram a palavra.

Fiquei a semana toda fazendo um tratamento para inglês ver e nem treinei. Fiquei o final de semana de folga e me apresentei de novo.

Liberado, voltei aos treinos, mas no time reserva, já que vencemos no final de semana.

Nem mais para os aspirantes eu era relacionado. Fui cobrar do treinador e do diretor porque não jogava mais. Eles me disseram para eu não reclamar, já que estava ganhando muito para as besteiras que eu fazia quando atuava.

Não percebi, mas a minha carreira já tinha acabado.

Consegui ser emprestado. Uma, duas, três vezes. Mas era só eu me apresentar no novo clube e já me perguntavam do lance no clássico. Era só eu pegar a bola, ou fazer uma jogada e eu sentia que os meus companheiros e a torcida não confiavam em mim.

Pode ser um exagero, mas, com o tempo, cada vez mais aquela escorregada se tornava um pesadelo em minha vida profissional. Não conseguia mais jogar, fiquei traumatizado. Por isso, que o cara que eu mais admiro no futebol é o Barbosa.

O cara sobreviveu mais de 50 anos sendo considerado o culpado pela derrota na Copa de 1950. Mesmo depois daquela derrota no Maracanã, ele ainda jogou por um bom tempo e teve a vida toda para explicar como ele tomou aquele gol da derrota. Ele sim foi um forte.

No meu caso isso não aconteceu. O erro me venceu e minha carreira foi embora."

Sem dizer mais nada ficou olhando para o nada, talvez lembrando pela milésima vez aquele dia em que um lance terminou com sua vida profissional.

Até a próxima.

Na semana passada, ouvi (e vi) muitas pessoas comemorando muito mais a vexatória derrota da Argentina para a Bolívia do que a vitória brasileira sobre o Peru. Está certo que o time de Dunga não encanta, mas acho que nós estamos exagerando demais nesta "guerra" futebolística que supostamente temos contra os argentinos. A rivalidade foi criada por colocar frente a frente as duas maiores escolas do futebol mundial e não por narradores enlouquecidos que vivem a todo o momento lembrando que os argentinos são os nossos inimigos e vilões e, por isso, merecem sempre perder.

Os quatro times mais tradicionais chegaram às semifinais do Campeonato Paulista. Nos confrontos, continuo pensando que o Palmeiras elimina o Santos, enquanto o São Paulo despacha o Corinthians. Mas, de todo modo, deve-se dar crédito ao trabalho do técnico Vagner Mancini, do Santos, que pegou o time em situação delicada, mudou a forma de o time jogar e o levou a uma classificação que parecia distante. Também merece registro a boa campanha da Portuguesa, que se mantiver o elenco vai conseguir com tranquilidade uma das vagas de acesso para a Série A do Campeonato Brasileiro do próximo ano.

Humberto Luiz Peron é jornalista esportivo, especializado na cobertura de futebol, editor da revista "Monet" e colaborador do diário "Lance". Escreve para a
Folha Online às terças-feiras.

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