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Gandula

26/03/2002

Medíocres

MARCOS GUTERMAN
Colunista da Folha Online

Amanhã a seleção vai enfrentar um país que quase nem existe mais, mas o tema desta coluna é ainda a partida contra a Islândia, ou melhor, uma breve jogada daquele amistoso. O lance durou uns poucos segundos, mas foi de um implacável significado: Edílson recebeu um lançamento na lateral da grande área, parou a bola diante da marcação do zagueiro islandês, jogou o corpo para um lado, gingou para o outro, ameaçou partir para o drible e... e nada. O atacante da seleção recuou a bola para o primeiro volante que encontrou, e a jogada prosseguiu monótona, como manda, afinal, o padrão Scolari. Edílson, havido como herdeiro da tradição de graça e molecagem do futebol brasileiro, resignou-se diante de um zagueiro da Islândia, país cuja história no futebol dispensa comentários. O que aconteceu com o habilidosíssimo atacante, ao ponto de impedi-lo de levar adiante a jogada mais óbvia, o drible humilhante e fácil num zagueiro amador? A resposta é: medo.

Garrincha recebe um lançamento na lateral da grande área. Pára diante da marcação do zagueiro. Passa o pé sobre a bola uma, duas, três vezes e... a cena acaba. O filme não permite saber se ele conseguiu superar o zagueiro e realizar algo, digamos, produtivo: um cruzamento para a grande área, um passe, qualquer coisa. Pouco importa: essa cena, repetida à exaustão por anos a fio, tornou-se representativa do "verdadeiro futebol brasileiro", a despeito das tantas outras jogadas, de cujos registros se desconhece a existência, em que certamente Garrincha gingou inutilmente e sucumbiu a um João qualquer.

Louva-se que Garrincha faça de seu adversário um nada, um menos que nada, e que isso se torne prova incontestável da imensa superioridade do Brasil nesse esporte. Como uma espada de Dâmocles, essa cena pende sobre a cabeça de Edílson, como a lembrar-lhe qual é sua responsabilidade histórica. No entanto Edílson é obrigado a produzir algo, a extrair do lance a chance do gol, porque nós sabemos o que acontece depois que ele ginga para lá e para cá _esse filme, afinal, continua. Edílson, da geração de jogadores de futebol habituada à televisão, sabe que está sofrendo, por todos os ângulos, o escrutínio de milhões de pessoas, a maioria das quais crente de que o Brasil ainda é o Brasil de Garrincha e de seus inconclusivos dribles.

Eis o medo de Edílson: supondo que resolvesse tentar o drible e perdesse a bola para o incrivelmente limitado zagueiro islandês, o atacante brasileiro se veria no cadafalso, julgado como traidor da pátria e possivelmente condenado ao purgatório dos jogadores que "sentem o peso da amarelinha". A crueldade desse julgamento está na óbvia constatação de que a) não temos mais Garrincha; e b) o futebol brasileiro há muito não é mais o de Garrincha, se é que um dia foi, pois, para reconstituí-lo na plenitude em que ele se nos habitualmente apresenta, dependemos de filmes inacabados e memórias cansadas.

No imaginário brasileiro, Garrincha, o "Lúdico", deveria estar encarnado em cada nativo, e espera-se, a cada nova promessa que calça chuteiras, a manifestação desse Messias, que virá nos redimir. Junto com isso, porém, está a contínua exigência da vitória, pois não é admissível que "o melhor futebol do mundo" caia diante de adversários fracos, como se o futebol não tivesse três resultados possíveis. Os 11 beques de Felipão sabem muito bem disso. O recuo da bola para um volante, em lugar da jogada de efeito, foi, assim, a solução adequada ao medíocre repertório de um país cada vez mais igual aos outros naquilo que ainda se julga diferente e melhor.
Marcos Guterman é editor-adjunto de Mundo da Folha de S.Paulo e escreve para a Folha Online quinzenalmente às terças-feiras

Email: gandula@folha.com.br

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