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Gandula

07/05/2002

Ronaldo, o miserável

MARCOS GUTERMAN
Colunista da Folha Online

Diante do choro de Ronaldo, o locutor da RAI não se conteve: "É o retrato da tragédia". A Inter perdeu o scudetto anteontem, na última rodada do Campeonato Italiano, mas a derrota, em toda a sua dimensão, estava estampada no rosto de um só homem. Ronaldo verteu lágrimas como se fora ele o responsável pela tragédia e também sua principal vítima. Não havia nem a Internazionale nem seus torcedores, que amargam vários anos na fila do torneio nacional. Só havia o mártir Ronaldo _e, nas atuais circunstâncias, esse papel lhe cai bem.

Já não é mais possível saber onde termina Ronaldo Nazário de Lima e começa o "Fenômeno". Onde termina o cidadão comum e começa o produto de uma cuidadosa e rentável estratégia de representação. Muito antes disso tudo, Pelé aprendera a se referir a si mesmo na terceira pessoa, reservando a vida mundana a um certo "Edson". O que antes era uma criação meramente instintiva, porém, hoje se tornou deliberada intenção de inventar um semideus, descolado do mundo real, cuja função é iludir e manipular em proveito de um grupo de investidores.

Todos desempenhamos papéis, é verdade. Diz o sociólogo Robert Ezra Park: "Não é um mero acidente histórico que a palavra 'pessoa', em sua acepção primeira, queira dizer máscara, mas, antes, é o reconhecimento de que todo homem está sempre, mais ou menos conscientemente, representando um papel. É nesses papéis que conhecemos uns aos outros, é nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos". Ou seja, criamos personagens sobre os quais recai toda a responsabilidade de nos representar no mundo. Aparentamos ser quem gostaríamos intimamente de ser, e nossas atitudes vão variar de acordo com o "palco" e a "platéia".

Não se trata necessariamente de fingir _antes pelo contrário, como afirma outro sociólogo, Erving Goffman, ao dizer que "o ator pode estar completamente compenetrado de seu próprio número, pode estar sinceramente convencido de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade". Se o público também acreditar na representação como a "verdadeira realidade", diz Goffman, o que é apenas encenação passa a ser o real para todo aquele grupo de pessoas.

O futebol, como mobilizador de paixões sem rival, parece ser o mundo adequado para que essa farsa se dê em toda a sua plenitude. Voltando ao jogo de domingo em Roma, sugestivamente disputado num estádio chamado "Olímpico", um homem entrou em campo acreditando estar cumprindo uma missão. A derrota, imprevista no roteiro do herói e de seus admiradores, tornou o espetáculo ainda mais emocionante: o deus manifestou sua porção humana e chorou, como a assumir toda a culpa pela tragédia. A representação funcionou instantaneamente: as câmeras flagraram Ronaldo às lágrimas, e então era como todo o resto estivesse salvo. Pois, afinal, a perda de um mísero scudetto não se compara ao drama desse notável redentor dos homens, cuja série de contusões apenas reforça o caráter épico de sua trajetória.

Ronaldo fingiu? Certamente não. Ele acredita em seu papel e nós, torcedores, no nosso. É justamente desse ritual quase religioso, porém, que vertem os lucros para os empresários do espetáculo, aqueles que, à margem do cenário, puxam os cordéis e transformam a emoção em produto de revenda. Numa palavra: Ronaldo-Fenômeno é Ronaldo-Mercadoria, um homem que não se pertence mais de forma alguma, cuja razão de ser é somente saciar consumidores ávidos por circo e conferir riqueza aos usurpadores da arte do futebol.

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Marcos Guterman é editor-adjunto de Mundo da Folha de S.Paulo e escreve para a Folha Online quinzenalmente às terças-feiras

Email: gandula@folha.com.br

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