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Noutras Palavras

17/12/2004

Posição das palavras na frase pode conduzir a diferentes leituras

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

Se na matemática a ordem dos fatores não altera o produto, na gramática a história é outra. É verdade que nem sempre a posição das palavras na oração é traço pertinente, mas é interessante observar que existe uma certa ordem, que é mais freqüente na língua. Esse arranjo usual é apreendido naturalmente (ou milagrosamente) pelos falantes da língua.

Em português, é comum o uso do sujeito no início da frase. Por exemplo: "A criança nasceu com três quilos"; "O presidente foi escolhido diretamente pela população"; "O sino soará às dez horas". Não é por outro motivo que a inversão da ordem usual cria um efeito de realce. Assim: "Nasceu com três quilos a criança"; "Foi escolhido diretamente pela população o presidente"; "Soará o sino às dez horas".

Com alguns verbos, entretanto, geralmente intransitivos, o mais comum é a posposição do sujeito. Por exemplo: "Existem coisas misteriosas"; "Resta uma pergunta". Essas construções são as mais freqüentes. A anteposição do sujeito, nesse caso, é que criaria o efeito de ênfase. Assim: "Coisas misteriosas existem"; "Uma pergunta resta".

Na expressão oral, é fácil destacar um ou outro segmento da frase --afinal, é possível lançar mão da entonação, recurso altamente expressivo. Uma expressão facial ou um gesto também podem alterar significativamente o conteúdo de uma frase. Não há quem nunca tenha lançado mão desses recursos para fazer uma ironia, por exemplo. Dizer de alguém que está elegantíssimo pode não soar como elogio, dependendo, às vezes, tão-somente de uma modulação de voz ou de um olhar.

Atendo-nos às possibilidades expressivas da modulação de voz, num período como "O professor visitou o museu ontem com as crianças", a ênfase pode ser posta em vários pontos. Assim: "O professor [e não outra pessoa] visitou o museu ontem com as crianças"; "O professor visitou o museu [e não outro lugar] ontem com as crianças"; "O professor visitou o museu ontem [e não em outro dia] com as crianças"; "O professor visitou o museu ontem com as crianças [e não sozinho ou em companhia de outras pessoas]".

A questão que se coloca é como fazer para acentuar determinado trecho na linguagem escrita. A língua dispõe de estruturas destinadas a esse fim. Por exemplo: "Foi o professor que visitou o museu ontem com as crianças". A estrutura correlativa "foi... que" põe em evidência o termo que se pretende destacar. Note-se que o trecho salientado deve ficar no início da oração, posição própria para a ênfase. Assim: "Foi o museu que o professor visitou ontem com as crianças"; "Foi ontem que o professor visitou o museu com as crianças"; "Foi com as crianças que o professor visitou o museu ontem". Outra possibilidade seria o emprego da expressão expletiva "é que": "O professor é que visitou o museu ontem com as crianças". Essa opção, entretanto, funcionaria para destacar o sujeito, não os demais sintagmas.

À parte a questão do destaque, a posição das palavras na frase pode criar armadilhas. Observe o período seguinte, extraído de um texto jornalístico: "Futuro titular do Desenvolvimento Social e atual secretário-adjunto da Casa Civil do Estado, Pesaro foi alvo de brincadeiras do prefeito eleito ontem".

Ora, a intenção do redator era dizer que ontem Pesaro foi alvo de brincadeiras, não que o prefeito foi eleito ontem. A posição do advérbio "ontem", entretanto, conduz às duas leituras. Ainda que o sentido pretendido seja percebido pelo leitor (que sabe que o prefeito não foi eleito ontem), a frase em si é ambígua, pois a sua estruturação permite ambas as interpretações. Para evitar isso, bastaria mudar a ordem dos termos: Futuro titular do Desenvolvimento Social e atual secretário-adjunto da Casa Civil do Estado, Pesaro ontem foi alvo de brincadeiras do prefeito eleito".

É o mesmo caso de outra frase, também extraída de jornal impresso: "É preciso deixar essa história para boi dormir de lado". A alteração da ordem evitaria essa ambigüidade. Assim: "É preciso deixar de lado essa história para boi dormir".

O fato é que esse tipo de construção é relativamente freqüente no texto jornalístico, o que talvez se deva à aproximação de sua linguagem com a linguagem falada. O problema, todavia, é que a linguagem escrita não reproduz com exatidão a falada _exatamente por não dispor dos "acessórios" desta. Assim, para evitar situações jocosas e, às vezes, embaraçosas, é bom estar atento às possíveis leituras duplas.
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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