Colunas

Noutras Palavras

18/02/2005

Problemas da concordância entre nomes

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

A concordância nominal do português tem algumas particularidades interessantes. Partimos, é claro, do princípio geral do acordo de gênero e número que ocorre entre o substantivo e o adjetivo. A um substantivo masculino liga-se um adjetivo masculino, a um substantivo feminino liga-se um adjetivo feminino e assim por diante.

O assunto é aparentemente simples, mas nem por isso deixa de oferecer dúvidas. É muito comum ouvirmos frases do tipo: "Vou comprar um óculos escuro". O termo "óculos" está, nesse caso, sendo tratado como singular (como "o ônibus", "o lápis" etc.), mas deveria estar no plural. O objeto que nomeia o par de lentes usadas em frente aos olhos é um substantivo plural. Assim, o artigo que o antecede, bem como o adjetivo que o segue, fica igualmente no plural: "Vou comprar uns óculos escuros".

Entende-se a confusão --afinal, os usuários da língua percebem os óculos como um só objeto, e o uso da forma plural está associado à referência a mais de um elemento.

Esse, todavia, não é o mais complicado dos casos, pois basta tomar conhecimento de que se trata de um plural e ajustar a concordância. Mais problemáticas são as seqüências de substantivos adjetivadas por um só atributo. Por exemplo: "O rapaz vestia calça e camisa preta ou calça e camisa pretas?". As duas construções estão corretas. No primeiro caso, ocorre o que chamamos de concordância atrativa, ou seja, o adjetivo ("preta") concorda com o elemento que lhe é mais próximo ("camisa"), embora se refira a todos os substantivos da seqüência (no caso, "calça e camisa"); no segundo caso, a concordância é lógica, isto é, o adjetivo sofre a flexão de plural pelo fato de referir-se a mais de um substantivo ("camisa e calça pretas").

À primeira vista, pode parecer que a concordância atrativa leva a uma interpretação errada da frase, supondo-se que o adjetivo "preta" se refira apenas ao último elemento ("camisa"). Ora, essa questão se resolve pelo princípio do paralelismo, que o usuário da língua intui. Em outras palavras, por que alguém diria que fulano veste calça (sem adjetivo nenhum) e camisa preta? A frase é, no mínimo, improvável. O que se espera é algo do tipo: "Vestia calça branca e camisa preta", por exemplo. Resta ainda, se houver, de fato, a necessidade de adjetivar apenas um dos termos, a possibilidade de inverter a ordem dos elementos: "Vestia camisa preta e calça".

Superado esse primeiro problema, surge o próximo. Se estiver anteposto à seqüência, o adjetivo concordará exclusivamente com o elemento mais próximo. Assim: "Escolheu má hora e lugar para o encontro". O adjetivo "má" caracteriza tanto a hora como o lugar do encontro. Essa regra, entretanto, só é válida para adjetivos que funcionam como adjuntos adnominais (não vale para os que funcionam como predicativos). E, afinal, qual é a diferença entre o adjunto adnominal e o predicativo?

Antes de prosseguir nessa explicação, é preciso lembrar que o adjetivo é aquela palavra que exprime um atributo ou característica de um ser. Adjunto adnominal e predicativo são funções que esse atributo pode exercer na oração, isto é, são funções sintáticas.

O adjetivo na função de adjunto adnominal exprime uma característica própria do ser, a ele pertencente e a ele diretamente ligada. Já o adjetivo na função de predicativo exprime uma característica momentânea ou circunstancial e normalmente se refere ao substantivo por meio de um verbo de ligação.

Ora, ao dizer algo como: "Comprei uma camisa preta", "preta" é atributo próprio da camisa _é, portanto, um adjunto adnominal. Numa construção como: "Tinha os olhos lacrimosos", o adjetivo "lacrimosos" é um atributo circunstancial, pois quer dizer que a pessoa, naquele momento, apresentava os olhos lacrimosos (o que é muito diferente, por exemplo, de ter os olhos azuis, esta uma característica inerente aos olhos). "Lacrimosos" funciona como predicativo; "azuis", como adjunto adnominal.

Entendida a distinção entre o adjunto adnominal e o predicativo, basta lembrar que este último não admite concordância atrativa. Assim: "O réu e a ré eram inocentes", "Eram inocentes o réu e a ré", "O juiz considerou o réu e a ré inocentes", "O juiz considerou inocentes o réu e a ré".

Para memorizar essa estrutura, vale a pena lembrar um trecho da bela canção "Se Eu Quiser Falar com Deus", de Gilberto Gil: "Se eu quiser falar com Deus (...)/ Tenho que ter mãos vazias/ Ter a alma e o corpo nus". Observe que "vazias" e "nus" são atributos circunstanciais dos substantivos a que se referem. A idéia é que as mãos devem estar vazias, bem como a alma e o corpo devem estar nus, no momento de falar com Deus.
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

Leia as colunas anteriores

FolhaShop

Digite produto
ou marca