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Noutras Palavras

25/02/2005

Sobre afirmações e suposições

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

Quem lê jornais já deve ter percebido o largo uso em suas páginas do adjetivo "suposto" e do advérbio "supostamente". O motivo dessa nova "moda" não é difícil de adivinhar: ser um suposto criminoso é bem diferente de ser um criminoso. O adjetivo empresta o tom de conjectura ao substantivo. Até aí, tudo bem. É salutar que não andemos acusando inocentes a torto e a direito. O problema é que, às vezes, esse recurso funciona como uma espécie de muleta e acaba provocando efeitos indesejados.

Vejamos um exemplo recente: "Resta agora encontrar uma segunda arma que teria sido usada para matar irmã Dorothy. De acordo com informações da polícia, a expectativa é que Uilquelano Pinto, conhecido como Eduardo, mas que na verdade se chama Clodoaldo Carlos Batista, preso na noite de segunda-feira, em Belo Monte, no oeste do Pará, confesse o crime e indique onde está escondida a suposta pistola".

Acostumados que estamos a essa "terminologia", lemos o texto e seguimos em frente, mas, se, por algum motivo, interrompermos a leitura para pensar sobre as palavras (vício de professores de português?), será quase certo que nos perguntemos o que, de fato, vem a ser uma "suposta pistola". O que se põe em dúvida é a existência e o uso dessa arma. Assim, melhor seria dizer: "...a expectativa é que (...) confesse o crime e indique o local onde a pistola, supostamente utilizada por ele, foi escondida".

Tomemos outro caso: "No recurso especial para o STJ, a defesa alegava que, ao julgar a apelação, o tribunal não apreciou supostas falhas existentes". Essa construção, em particular, parece convidar ao paradoxo, pois as falhas são a um só tempo supostas e existentes! Para evitar a estranheza de um texto como esse, bastaria dizer que o tribunal não apreciou ou considerou "a possibilidade de existirem falhas". O adjetivo "suposto", entretanto, parece ter assumido ares de linguagem de bom-tom. É quase uma regra de etiqueta!

Vejamos mais um exemplo: "Os familiares investigaram o crime por conta própria e descobriram quem seria o suposto assassino. 'Ele está no Nordeste', disse Anderson". Houve a preocupação em não afirmar ser fulano um assassino, mas, ao mesmo tempo, está dito que os familiares "descobriram"... Que significa descobrir um suposto assassino? Talvez fosse melhor dizer que "encontraram um suspeito" ou, simplesmente, que "acreditam ter descoberto a identidade do assassino". Nesse caso, o que se põe em dúvida é o fato de terem descoberto o assassino. É possível que os familiares acreditem nisso, mas não há certeza de que realmente tenham chegado ao criminoso.

Vale a pena observar mais um caso: "Os únicos ouvidos no processo foram os presos Marcos Massari e Gilmar Leite, colaboradores do Gradi, segundo a promotora Vania Maria Tuglio. Eles negaram suposta cilada, depoimento que também beneficiou os PMs". De fato, o que se nega é que tenha havido uma cilada. Tomada "ao pé da letra", a frase diz que eles negaram uma hipotética cilada, não uma cilada real, verdadeira... E, se assim tiver sido, o depoimento não terá levado a lugar algum! Muito mais fácil, então, dizer que eles negaram ter havido uma cilada.

O que se nota é que, às vezes, o demasiado uso de "supostos" ocorre por excesso de zelo. Aqui vai um último exemplo (são muitos mesmo): "Há pouco mais de uma semana na região, a Rota já se envolveu em pelo menos um caso de suposta troca de tiros, em Caraguatatuba, que resultou na morte de um rapaz de 18 anos, acusado de assaltar uma casa".

Afinal, em que se envolveu a Rota? O que seria "um caso de suposta troca de tiros"? Outras opções podem dizer com mais propriedade o que, de fato, ocorreu. A verdade é que o redator afirma ter havido envolvimento da Rota em uma troca de tiros. Colocar o adjetivo "suposta" parece não ter amenizado o efeito da afirmação.

É mais plausível que a idéia fosse pôr em dúvida o envolvimento da Rota na troca de tiros (da qual resultou a morte de uma pessoa) do que pôr em dúvida a ocorrência da troca de tiros, como parece ter feito o redator.

Os exemplos de uso do "suposto" são inúmeros e, como se vê, nem sempre tornam o texto mais preciso.
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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