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Noutras Palavras

04/03/2005

Estruturas redundantes

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

O modo subjuntivo e a subordinação são recursos menos usados na linguagem falada talvez por exigirem maior capacidade de abstração. O fato é que a linguagem da imprensa, cada vez mais próxima da fala, tem registrado esse tipo de comportamento lingüístico em certas construções.

O fragmento que dá ensejo ao texto de hoje é o seguinte: "Os especialistas recomendam que os exames devem ser feitos anualmente". Aparentemente sem problemas? Pois é. Numa oração como "os exames devem ser feitos anualmente", o verbo "dever" exprime a idéia de aconselhamento. Essa oração, entretanto, no trecho em questão, funciona como complemento do verbo "recomendar", cujo sentido é o mesmo. Donde a inutilidade do auxiliar "dever", que dá um tom redundante ao texto.

Mais simples e mais claro seria dizer: "Os especialistas recomendam que os exames sejam feitos anualmente". Talvez a freqüência desse tipo de estrutura se deva a certa "economia" que se faz do uso do subjuntivo, ou seja, em vez de "sejam feitos" (subjuntivo), opta-se por "devem ser feitos" (indicativo).

Esse uso é bastante freqüente também em períodos compostos cuja oração principal contém o verbo "determinar". Veja este exemplo: "Defensor do GNV, Goldenberg lembra que a lei municipal nº 12.140 determina, desde 5 de julho de 1996, que a frota de transporte paulistana teria de ser convertida ao gás. Não passa de letra morta". Aqui talvez em decorrência do hábito cauteloso de certos jornalistas, que evitam fazer afirmações categóricas, a lei deixa de determinar e passa a sugerir. Como é possível que uma lei determine que alguma coisa "teria de ser" feita? Se existe uma determinação, está clara a idéia de obrigação. Donde o ideal ser uma frase do tipo: "...a lei determina que a frota de transporte paulistana seja convertida...". Ser a lei cumprida ou não é outra questão.

Uma variante do "dever ser" é o "tem de ser". Trata-se do mesmo valor de obrigação. Veja-se este caso: "O argumento usado pelo Ministério Público Federal --e acatado pelo STF-- é que a Constituição determina que aumentos desse tipo têm de ser aprovados por meio de projeto de lei votado em plenário". Melhor dizer que a lei determina que aumentos desse tipo sejam aprovados...".

Aparece também o verbo "determinar" seguido de "poder", confundindo-se as noções de determinação (dever) e permissão (poder). Assim: "A norma atual (lei nº 9.096, de 19/9/ 1995) é muito mais rigorosa, pois determina que, a partir da próxima legislatura, só poderão funcionar no Congresso os partidos que tenham no mínimo 5% dos votos". Na verdade, ocorre uma determinação: a tal lei determina que funcionem no Congresso somente os partidos que tenham, no mínimo, 5% dos votos.

Mais curioso ainda é este exemplo: "Maluf pede, para o julgamento do mérito, a 'prerrogativa de foro', estabelecido por meio de lei que determina que ocupantes e ex-ocupantes de cargos públicos têm o direito de responder 'por crimes comuns e de responsabilidade' em órgãos superiores de Justiça". Aqui talvez o ideal fosse alterar a fórmula "a lei determina que" para algo como: "...a lei faculta a ocupantes e ex-ocupantes de cargos públicos o direito de responder por crimes comuns e de responsabilidade em órgãos superiores da Justiça".

O verbo "prever" também figura nesse tipo de construção. Assim: "O Banco Mundial prevê ainda que o crescimento dos Estados Unidos deve continuar sendo maior que o da União Européia". O ideal seria dizer que o Banco Mundial prevê que o crescimento (...) continue sendo...".

Outros exemplos confirmam essa tendência a não usar o subjuntivo: "A organização também recomenda que as equipes de resgate devam facilitar ao máximo a identificação dos mortos" ("recomenda que facilitem"); "Segundo o fabricante, a Suvinil Limpa Fácil permite que uma parede manchada possa ser lavada sem desbotar" ("permite que seja lavada"); "O aumento do superávit primário permite que o governo possa reduzir os juros" (permite que reduza"), "A decisão permite que o sindicato local possa realizar manifestações em frente às agências" ("permite que realize").

Vale a pena empregar o modo subjuntivo e eliminar a redundância do texto.
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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