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Noutras Palavras

01/04/2005

Uma hipótese sobre o gerundismo

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

Muito se tem comentado certo uso, bastante freqüente, do gerúndio. São as já conhecidas frases com que nos brindam as secretárias, os recepcionistas e os atendentes de serviços de telemarketing em geral: "Vou estar transmitindo o recado ao doutor fulano", "Vamos estar remetendo uma segunda via do documento pelo correio", "Vamos estar telefonando a todos os sorteados", "Vamos estar encaminhando o seu caso à nossa gerência administrativa", "O senhor pode estar aguardando na fila, por favor?", "A gerência vai estar estudando o seu caso" etc. etc.

Em comum essas frases têm uma estrutura verbal inadequada e uma determinada situação de emprego.

Do ponto de vista gramatical, nenhuma delas requer, de fato, o gerúndio, cuja função, grosso modo, é apresentar o processo verbal em curso, ou seja, indicar uma ação contínua, inacabada. Experimente substituir o gerúndio dessas frases pelo infinitivo (cuja função é apresentar o processo verbal em potência, exprimindo a idéia da ação). Teremos o seguinte: "Vou transmitir o recado ao doutor fulano", "Vamos remeter uma segunda via do documento pelo correio", Vamos telefonar a todos os sorteados", "Vamos encaminhar o seu caso à nossa gerência administrativa", "O senhor pode aguardar na fila, por favor?", "A gerência vai estudar o seu caso".

É possível que, mesmo intuitivamente, o leitor opte pelas últimas construções, que têm uma característica assertiva --afinal, é clara a intenção de quem diz que "vai fazer alguma coisa". Quando, todavia, a pessoa diz que "vai estar fazendo alguma coisa", a impressão que temos é que a assertividade da sentença se afrouxa, tornando tênue o compromisso com aquilo que está sendo dito. O gerúndio, por indicar ação inacabada, é mais vago e, portanto, pode sugerir certa indeterminação.

Em outras situações, a construção é perfeitamente adequada. Se a sentença for, por exemplo, "Quando você chegar, eu vou estar (estarei) dormindo", não haverá problema algum. Isso porque a ação de "dormir" é contínua, diferentemente de ações como "telefonar", "enviar" ou "resolver".

Curiosamente, esses gerúndios inadequados aparecem sempre em determinados contextos, a saber, em situações de formalidade. Mais ainda: são frases proferidas por "porta-vozes", por funcionários que, em geral, servem de "barreira" ou, numa interpretação mais otimista, de intermediários entre aquele que deseja a comunicação e um outro que não a deseja na mesma intensidade. Quem já passou pela experiência de telefonar a um serviço qualquer de atendimento ao cliente ou a uma "central de relacionamento" certamente já ouviu uma dessas frases.

Donde começa a parecer que estamos diante de uma espécie de fórmula sintática que, com o pretexto de aparentar polidez, dilui o compromisso com a informação ou com a promessa.

Fórmulas de polidez sempre existiram. O próprio plural da modéstia (uso do "nós" no lugar de "eu") é um exemplo disso. Alguém defende uma tese afirmando: "Nós descobrimos..." em vez de "Eu descobri...". Isso é um recurso de atenuação, cujo objetivo é disfarçar o orgulho das próprias idéias ou descobertas (ou evitar um involuntário tom arrogante).

Vale observar que, em várias das frases acima, esse plural é empregado. A impressão, no entanto, nesses casos não é a de modéstia. Sentimos antes um reforço do descompromisso. Ao ouvirmos um "Vamos estar resolvendo o seu problema", não sabemos quem vai resolver o problema, tampouco se vai realmente fazê-lo. Várias pessoas dizem sentir-se incomodadas com esses gerúndios. Já há não só quem diga não suportar gerúndios como até quem se esmere no ofício de arrancá-los um a um de seus textos. Bem se vê que o pobre gerúndio está pagando o pato, mas talvez o que, de fato, irrite nessas construções seja o vazio em que caímos quando as ouvimos. São fórmulas totalmente desprovidas de qualquer compromisso com qualquer coisa.

Lingüisticamente, são frases estranhas à nossa língua. Não são construções que aprendamos naturalmente na infância. Alguém já ouviu uma criança indagar à mãe algo do tipo: "Posso estar brincando lá fora?" ou "Posso estar indo ao cinema com meus amigos?".

Há os que acreditam que a propagação dessas construções se deva à tentativa de tradução literal da estrutura do inglês "will be + gerúndio". Nesse caso, o problema é mesmo de tradução, pois o gerúndio do inglês nem sempre equivale ao do português. O fato, entretanto, é que essa construção parece florescer sobretudo nesses contextos de formalidade em que um funcionário é encarregado de impedir, dificultar ou adiar o contato de alguém com uma "instância superior" (que pode ser uma entidade jurídica ou, quem sabe, sobrenatural...).

As pessoas que fazem uso dessa construção parecem senti-la como um tratamento a um só tempo polido e eficiente. É interessante verificar que essas frases não aparecem em contextos de descontração. Quem é que diz: "Vamos estar tomando um chopinho depois do expediente?". Não é à toa que as pessoas vêm estranhando esse uso do gerúndio (já chamado de "gerundismo") e acabam por identificá-lo de imediato como uma linguagem própria dos atendentes em geral.

Esses gerúndios parecem esticar o tempo, como se fossem a expressão dos infindáveis minutos que perdemos quando os atendentes nos dizem que vão estar transferindo a nossa ligação para o setor disto ou daquilo!...
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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