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Noutras Palavras

06/05/2005

Considerações sobre os porquês

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

Professores de português somos constantemente indagados acerca da correta grafia da palavra "porque". O motivo por que isso ocorre é a existência de quatro formas de escrever a dita seqüência de fonemas, que nem sempre configura uma palavra só.

Uma primeira distinção se dá entre a conjunção "porque", que exprime explicação ou causa, e o advérbio interrogativo de causa "por que". É preciso compreender, de início, o que é uma conjunção. Trata-se de um elemento de ligação, responsável pela articulação de duas orações.

No trecho: "Para o TJ, a empregada doméstica deve ficar presa porque é reincidente", a palavra "porque" estabelece um nexo de causa entre duas orações, a saber "a empregada doméstica deve ficar presa" e "é reincidente", expressando a segunda oração a causa da primeira. Em outras palavras, ser reincidente é a causa de a empregada doméstica ser mantida presa, segundo o TJ. A conjunção "porque" passa a integrar a oração que exprime a causa, explicitando, dessa maneira, a relação semântica entre as orações. Se assim é, como explicar o uso dessa conjunção no período seguinte: "A USP vai ter de explicar à Justiça porque não adota em seu vestibular ações afirmativas que ampliem o ingresso de estudantes de escolas públicas, negros e indígenas na universidade"?

Convém observar que a oração que inicia o período ("A USP vai ter de explicar à Justiça") não tem sentido completo --não constitui, portanto, uma afirmação passível de explicação. A oração "porque não adota em seu vestibular ações afirmativas" (sic) exerce função de complemento do verbo "explicar", que está contido na oração anterior, ou seja, ela é o objeto direto do verbo, não o seu adjunto adverbial de causa. Ter conhecimento disso é fundamental para acertar a grafia da palavra em questão.

A única conjunção que caberia na oração que completa o verbo "explicar" é a integrante "que", que encabeça as orações subordinadas substantivas objetivas diretas (por exemplo, "vai ter de explicar que esse procedimento é legal").

Ocorre, todavia, que a oração objetiva direta que completa o verbo "explicar" nesse período não tem conjunção. Trata-se de uma oração justaposta, introduzida por um advérbio interrogativo. Veja outras possibilidades permutáveis no mesmo contexto: "A USP vai ter de explicar como conseguiu fazer isso", "A USP vai ter de explicar onde pretende construir o novo campus", "A USP vai ter de explicar quando isso será feito". Observe que as palavras destacadas são advérbios (interrogativos): como (modo), onde (lugar), quando (tempo). No fragmento que analisamos, a questão que se coloca é a causa (não o modo, o lugar ou o tempo). Por esse motivo, usa-se o advérbio interrogativo de causa, ou seja, a forma "por que". Assim: "A USP vai ter de explicar por que não adota em seu vestibular ações afirmativas...".

Como se pode perceber, é a forma "por que" que encabeça as orações objetivas diretas, aquelas que completam o sentido de um verbo transitivo direto. Assim: "Diga por que não veio antes", "Saiba por que muitos já tomaram essa atitude", "Entenda por que os remédios sofreram reajuste" etc. Os verbos "dizer", "saber" e "entender" são transitivos diretos e seu complemento é uma oração introduzida pelo advérbio interrogativo "por que".

Para muitos, é tentador economizar a explicação e simplesmente indicar que se substitua "por que" por "a razão pela qual", truque que costuma levar a bons resultados. Assim: "A USP vai ter de explicar a razão pela qual não adota em seu vestibular ações afirmativas...". Certamente, um meio mais prático de resolver o problema da grafia, mas ter ciência do processo traz mais segurança a quem escreve.

Fica entendido até agora que, para indagar (direta ou indiretamente) a causa de algo, usamos a grafia "por que". A questão, porém, não se encerra aí. Existe uma situação em que essa forma apresenta um "que" acentuado ("quê"). Isso se dá por razão meramente fonética, ou seja, ocorre quando o "que" passa para uma posição tônica (em fim de frase). Assim: "Por que parou? Parou por quê?". Perto da pontuação forte, o "que" recebe o acento circunflexo. Assim: "Nunca revelou o conteúdo da conversa não se sabe por quê".

Em hipótese alguma será acentuado o "que" de construções como "Deverá dizer a que veio" ou "Não sabe o que o espera".

A grafia "por que" também equivale à forma "pelo qual" (pronome relativo antecedido da preposição "por"). Assim: "O ideal por que [pelo qual] luta é a paz".

Finalmente, a grafia "porquê", talvez o problema mais fácil de resolver. Trata-se de um substantivo, e o acento diferencial encarrega-se de distingui-lo da conjunção "porque". Fruto da substantivação da conjunção, significa o mesmo que "motivo" ou "causa". Assim: " Nunca se soube o porquê [o motivo, a causa] de seu arroubo". Na condição de substantivo, admite a flexão de plural: "Cada um tem seus porquês".
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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