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Noutras Palavras

07/06/2005

Hipérbole no texto é uma marca de subjetividade

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

"Até bebê de colo sabe que juro alto é inimigo da atividade econômica..."

Chama-se hipérbole o arranjo lingüístico que visa à expressão exagerada da natureza das coisas. O recurso, naturalmente usado pelos poetas, constitui uma figura de linguagem. A presença da hipérbole no texto é, portanto, uma marca de subjetividade.

Muitos haverão de lembrar-se dos conhecidos versos do poeta Augusto dos Anjos, que inicia a segunda estrofe do soneto "Psicologia de um Vencido" com os decassílabos "Profundissimamente hipocondríaco,/ Este ambiente me causa repugnância" --isso depois de chocar o leitor com a estrofe inicial, em que se define como um "monstro de escuridão e rutilância" que sofre "desde a epigênese da infância,/ A influência má dos signos do zodíaco".

Certamente o leitor percebe nessas palavras uma boa dose de extravagância --afinal, não se trata de mera linguagem referencial, que busca a precisão e a objetividade, qualidades desejáveis num bom texto informativo. A intenção do poeta não é propriamente informar. É antes exprimir um estado de alma, coisa que, em muitas situações, só se consegue com o desvio da linguagem usual e informativa.

Os volteios de linguagem, todavia, nem sempre nascem de um processo consciente de elaboração. E talvez por esse motivo muitas vezes nem sejam percebidos como figuras de estilo. A hipérbole, em particular, é uma figura presente na linguagem espontânea. O leitor já terá ouvido ou dito frases como as seguintes: "Já lhe disse isso mil vezes", "Passei duas horas esperando o ônibus" (esta, em alguns casos, pode não ser um caso de hipérbole...). Em ambos os exemplos, os numerais foram os responsáveis pelo exagero da imagem.

É interessante notar que essa idéia hiperbólica contida nos numerais é percebida pelos falantes e aproveitada na linguagem espontânea, em que já surgiram curiosas formulações, como "Disse aquilo 'n' vezes", partindo do significado matemático de "n" (representação de um número qualquer, não determinado), que se fixou com valor adjetivo, sugerindo grande quantidade ou excesso, ou mesmo "Disse aquilo 'trocentas' vezes", na qual ocorre aférese do vocábulo "quatrocentas", que ganha forte valor afetivo na linguagem oral.

Expressões como "morrer de rir" ou o brasileirismo "lindo de morrer" fazem parte do repertório das hipérboles do dia-a-dia e, por isso mesmo, seu valor estilístico praticamente já desapareceu, dado que já se incorporaram ao falar cotidiano de tal forma que não provocam a surpresa ou a estranheza necessárias para que o leitor se volte para a expressão em si (e não só para o seu conteúdo). O valor afetivo dessas expressões, contudo, permanece.

Na imprensa, sobretudo na voz de articulistas, encontramos uma linguagem muito próxima da oral. Recentemente, um deles, bastante indignado com o andar da economia no Brasil, vociferava queixas contra o governo, que, segundo ele, tentava justificar "mais aumentos numa taxa de juros obscenamente alta". Continuava o mesmo colunista: "(...) em qualquer lugar do mundo, até bebê de colo sabe que juro alto é inimigo da atividade econômica" e, em outro trecho, "vê-se agora, pelos dados do IBGE, que tampouco no Brasil existe juro alto que não iniba a atividade econômica, o que, aliás, 11 de cada dez analistas sérios vêm dizendo faz um monte de tempo".

Os exemplos do articulista falam por si mesmos. O termo "obscenamente", além de configurar exagero, contém sentido agressivo. Por meio da expressão, o autor dá vazão à sua zanga. O bebê de colo que entende de economia é flagrantemente um exagero --portanto, uma hipérbole. O mesmo vale para a expressão, aliás bastante corriqueira, 11 de cada dez.

Como se vê, o texto opinativo, ainda que não seja poético, comporta marcas de subjetividade e, portanto, pode apresentar certo viés retórico. O leitor, com certeza, encontrará outros exemplos de hipérbole na linguagem cotidiana.
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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