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Noutras Palavras

21/06/2005

"Ter a alma e o corpo nus..."

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

É princípio geral de concordância nominal que os adjetivos sigam o gênero e o número dos substantivos a que se referem. Assim, dizemos, por exemplo, que, em uma determinada festa, havia "homens bem-vestidos" e "mulheres bem-vestidas", cada adjetivo concordando com o substantivo que caracteriza.

Se, entretanto, desejarmos dizer em uma só frase que tanto mulheres como homens se apresentam elegantemente trajados, teremos um problema de concordância nominal a resolver: "Havia homens e mulheres bem-vestidos" ou "Havia homens e mulheres bem-vestidas"? Sabe-se que o gênero masculino, em português, atua como neutro, o que nos leva a usar o adjetivo no masculino plural para fazer referência a um conjunto de elementos de gêneros diferentes. Essa regra, todavia, não se aplica necessariamente ao exemplo acima.

Quando um mesmo adjetivo se refere a mais de um substantivo e se encontra posposto à seqüência, é possível flexioná-lo no masculino plural ou deixá-lo concordar com o elemento mais próximo (concordância atrativa). Ora, depreendemos disso que estão corretas as seguintes construções: "Havia homens e mulheres bem-vestidos" e "Havia homens e mulheres bem-vestidas".

Alguém poderia questionar o sentido pretendido por quem profere a última frase. Estaria a pessoa aludindo à elegância apenas das mulheres? Seria muito pouco provável que fosse essa a construção escolhida por quem pretendesse referir-se apenas às mulheres. Um exemplo distinto pode facilitar a compreensão disso: "Havia homens educados e mulheres bem-vestidas". Nesse caso, "bem-vestidas" é característica apenas das mulheres, pois os homens são caracterizados pelo adjetivo "educados". O princípio do paralelismo semântico é que torna improvável a construção da frase com apenas um elemento adjetivado.

Se, entretanto, o falante estiver diante de uma situação em que precise adjetivar somente um dos substantivos, o ideal será inverter a ordem dos termos, deixando o elemento adjetivado antes do outro. Assim: "Com o dinheiro que recebeu, comprou roupas caras e móveis" (em vez de "móveis e roupas caras").

Vimos até aqui que a concordância do adjetivo posposto a uma seqüência de substantivos de gêneros diferentes pode ser feita de duas maneiras, mas, caso esse adjetivo se anteponha à seqüência, só a concordância atrativa será possível. Assim: "Ele escolheu má hora e lugar" (e não "maus" hora e lugar...). A posição do adjetivo é, portanto, um fator relevante para a concordância.

Convém observar que o adjetivo cuja concordância depende da posição em relação à seqüência exerce necessariamente a função de adjunto adnominal, ou seja, representa um atributo inerente ao ser. Opõe-se, nesse sentido, ao adjetivo que funciona como predicativo, ou seja, àquele que representa uma característica momentânea ou circunstancial do ser. Quando dizemos, por exemplo, que "as mulheres e os homens estavam bem-vestidos", temos de usar o adjetivo no masculino plural. Note que, nesse caso, o adjetivo é parte do predicado da oração e relaciona-se aos substantivos por meio de um verbo de ligação ("estavam").

Para realizar a concordância nominal adequadamente, é preciso compreender a função (sintática) do adjetivo. Veja o seguinte exemplo, extraído de bela canção de Gilberto Gil: "Se eu quiser falar com Deus,/ Tenho que ter mãos vazias/ Ter a alma e o corpo nus". O adjetivo "nus", em concordância com "alma" e "corpo", vai para o masculino plural, independentemente da posição em que se encontra. Se o compositor tivesse optado pela sua anteposição, obteríamos a construção "ter nus a alma e o corpo".

Nesse exemplo, o adjetivo "nus" funciona como predicativo do objeto. Isso quer dizer que expressa uma característica circunstancial do objeto (do objeto direto do verbo "ter", ou seja, "a alma e o corpo"), não uma característica permanente. "Ter a alma e o corpo nus" significa estar naquele momento com a alma e o corpo nus. O verbo "ter" presta-se a esse tipo de construção, em que prevalece a idéia de atributo momentâneo. É o mesmo que ocorre no verso "ter as mãos vazias", no qual o adjetivo "vazias" também é um predicativo do objeto.

Na linguagem coloquial, é menos freqüente a construção com o verbo "ter" seguido de objeto e predicativo. Observa-se certa tendência ao uso do verbo "estar" seguido de locução introduzida pela preposição "com" ("estar com as mãos vazias"). Esse, contudo, é assunto para outra oportunidade. Por ora, vale a pena fixar a distinção entre o predicativo (atributo circunstancial) e o adjunto adnominal (atributo próprio) a fim de realizar adequadamente a concordância entre os nomes.
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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