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Noutras Palavras

01/07/2005

A sonoridade das palavras

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

O senhor Aloysio Papini Góes, que nos escreve da bela cidade de Maceió, queixa-se da presença dos cacófatos nos títulos jornalísticos da Folha.

O atento leitor recolheu várias manchetes que exemplificam o problema, por alguns considerado um "vício" de linguagem. "Rumsfeld critica gasto militar", "'América' ganha erotização e audiência", "Israel cerca Gaza e mata dois palestinos", "Filantrópica ganha R$ 839,7 milhões", "Mooca ganha casa argentina" --esta última a encabeçar texto de autoria do jornalista Josimar Melo, cujo nome encerra um cacófato!

Os que ainda não perceberam em que consiste o cacófato tenham o cuidado de ler as frases em voz alta. No nome Josimar Melo, a junção da sílaba final do prenome com o sobrenome do colunista configura a palavra "marmelo", designação não de todo inapropriada a um especialista em gastronomia... Essa coincidência sonora desvia a atenção do leitor (e, sobretudo, do ouvinte) do conteúdo informativo do texto, levando-o a deter-se na sua forma.

Os exemplos que incomodaram o nosso leitor apresentam o encontro das sílabas "ca" e "ga", que, juntas, compõem palavra considerada chula ou grosseira. É fato, entretanto, que a maioria dos leitores não percebe a cacofonia nesses casos. E o motivo disso é que a sílaba "ca" do final das palavras dos títulos mencionados é átona, ou seja, tem som extremamente fraco, enquanto o termo chulo engendrado por esse desastroso encontro teria o "ca" como sílaba tônica.

Existem, todavia, casos piores que os detectados pelo senhor Aloysio, nos quais há coincidência de tonicidade entre as palavras que compõem a seqüência e a palavra "invasora", que se imiscui sorrateiramente na frase. Vejamos alguns deles: "Seleção marca gol no último minuto do primeiro tempo", "Governo confisca gado em fazenda do interior de Goiás", "O presidente havia dado entrevista naquele dia", "Presidente vai a enterro"...

É verdade que o jornalista deve, na medida do possível, evitar a ocorrência dos cacófatos, mas cumpre dizer que nem sempre é possível eliminá-los por completo. Ao redator é oferecido um desafio constante, fruto da limitação de espaço das manchetes, do tamanho das letras impressas, enfim, da diagramação do texto.

É necessário informar com precisão, capturar a atenção do leitor, respeitar a norma culta do idioma e, finalmente, encaixar isso tudo num espaço predeterminado e, em geral, exíguo. Ao fim e ao cabo, o que vale é usar o bom senso. Aqueles cacófatos mais visíveis (ou audíveis) devem ser, naturalmente, combatidos.

Assim como os cacófatos, outros sons desagradáveis produzidos por seqüências de palavras chamam para si a atenção do leitor, desviando-a do conteúdo informativo do texto. É o caso de séries de palavras terminadas com o mesmo fonema, criando um efeito de eco. Assim: "O presidente geralmente sente dor de dente", "A instalação do portão na estação...".

É interessante observar, entretanto, que aquilo que, em um contexto, soa inadequado pode, em outro, produzir efeitos de estilo. A rima, a paronomásia (emprego de palavras de sons semelhantes e significados diversos) e a aliteração (repetição de fonemas) são recursos estilísticos de que se valem os poetas, a quem cabe a tarefa de manusear a linguagem de forma tal que para ela atraiam a atenção do leitor e, pelo caminho da subjetividade, cheguem à expressão de seus conteúdos.

Quem se ativer, por exemplo, à letra da música "Minha História", de Chico Buarque, observará uma grande concentração de recursos sonoros, que só contribuem para a transmissão da mensagem poética.

Minha História

Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente
Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Desesperada, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido, cada dia mais curto
Quando enfim eu nasci, minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas, por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré
Minha mãe não tardou a alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
E não sei bem se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor
Minha história e esse nome que ainda carrego comigo
Quando vou de bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz,
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz,
Me conhecem só pelo meu nome de menino Jesus.


A profusão de efeitos sonoros (rimas, aliterações etc.) auxilia na memorização da letra da música. Num texto noticioso, porém, esse tipo de recurso seria inadequado, dado que nele é preciso fazer prevalecer a objetividade da informação.

A aliteração presente nos versos de Cruz e Sousa "Vozes veladas, veludosas vozes,/ volúpias dos violões, vozes veladas,/ vagam nos velhos vórtices velozes/ dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas" reforça a atmosfera musical e plangente do poema.

Já o mesmo recurso empregado numa seqüência como "o rato roeu a roupa do rei de Roma" produz efeito antes cômico que poético. De qualquer maneira, a insistência na repetição de um fonema captura a atenção do leitor ou ouvinte, sobrepondo-se ao conteúdo informativo do texto.

Em suma, é necessário empregar os recursos lingüísticos conscientemente, de acordo com a intenção pretendida. Até mesmo os cacófatos podem ter serventia. Não é raro que figurem em textos humorísticos, nos quais é freqüente o uso do trocadilho.
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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