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Noutras Palavras

16/08/2005

Verbo "colocar": ampliação de sentido ou modismo?

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

Há palavras que caem no gosto das pessoas. Entram na moda, por assim dizer. E não digo aqui de certos modismos de linguagem, daquelas expressões que parecem conferir ao texto ou à fala certo aval de erudição.

A locução "a nível de" já foi espécie de marca de uma linguagem pretensamente culta. De tanto bombardeio que sofreu, hoje aparece tímida em um texto ou outro. Houve, nos tempos áureos desse modismo, um jogador de futebol que declarou ter sofrido uma "contusão a nível de joelho". Hoje a moda é o tal gerundismo, que, à primeira vista, pode parecer linguajar dos mais elegantes. Diz o protocolo: "Vou estar enviando seu recado", "Vamos estar recebendo a mercadoria na próxima semana" etc.

O abuso dessas construções acaba produzindo o efeito contrário. De suposto ícone de prestígio (afinal, mimetizam uma linguagem formal) passam ao seu oposto. Há, entretanto, outras vogas mais sutis, que, todavia, parecem seguir o mesmo caminho da busca da distinção. Observe o leitor como parece menos vulgar o uso do verbo "colocar" que o de seus sinônimos "pôr" e "botar". Hoje até as galinhas andam "colocando" ovos por aí...

Veja um belo trecho de texto de Rubem Alves: "O poema pede para ser lido vagarosamente. Terminada a leitura, não me atrevi a dizer nada. É preciso que haja silêncio. A música só existe sobre um fundo de silêncio. É no silêncio que a beleza coloca os seus ovos. É no silêncio que as palavras são chocadas. É no silêncio que se ouve aquela outra voz mencionada por Fernando Pessoa, voz habitante dos interstícios das palavras do poeta". A metáfora empregada pelo autor é da postura de ovos, mas o verbo empregado foi o "colocar", não o "pôr" nem o "botar".

O verbo "colocar" tem origem nas formas latinas "cum" e "locare" (pôr alguma coisa em seu lugar), ou seja, a idéia de lugar ou local está contida na palavra. O verbo "pôr" parece ter sentido mais abrangente, mas, ainda assim, vem sendo substituído pelo "colocar" nas mais variadas situações. A expressão "pôr em xeque", por exemplo, vem-se convertendo em "colocar em xeque". Hoje não se "põe" --"coloca-se"-- um assunto em discussão, uma casa à venda, a reputação em risco, um programa de TV no ar, um termo em destaque, uma pessoa sob suspeita ou em contato com outra, um tema em votação ou em questão, um plano em ação.

Não se trata aqui de condenar esse uso, muito menos de considerá-lo incorreto. A idéia é observar esse movimento de substituição, que talvez advenha da suposição de que um termo seja mais erudito (ou mais formal) que outro.

Expressões como "pôr a mão no fogo", "pôr a mão na consciência" ou "deitar lenha na fogueira" freqüentemente têm seu verbo substituído pelo "colocar". Um leitor que, indignado com a situação do país, escreve à Folha, pergunta o seguinte: "Alguém coloca a mão no fogo pelas declarações de Roberto Jefferson?". Outro texto jornalístico: "Lavagna, no entanto, decidiu colocar lenha na fogueira ontem, quando disse que o país considerará que está fora da moratória caso dois terços de sua dívida total sejam regularizados". Em carta assinada por uma juíza, lê-se o seguinte: "É chegado o momento de que o Ministério Público, de posse da elevada missão outorgada pela Constituição Federal, coloque a mão na consciência".

Nos trechos "A vitória, então, caiu nas mãos de Juan Pablo Montoya, companheiro de Raikkonen. Mas o temperamento esquentado do colombiano colocou tudo a perder", "Todavia não se pode negligenciar que a UE coloca medo numa parcela significativa da população francesa" e "Desceu do ônibus, mostrou uma arma e colocou todo mundo pra correr", observamos o verbo "colocar" em expressões nas quais o uso popular já consagrara o verbo "pôr".

Enquanto o verbo "colocar" parece transmitir a idéia de formalidade, que se reveste de certo valor eufemístico, sinônimos como "botar" e "meter" parecem produzir o efeito contrário, traduzindo um tom agressivo. Veja este texto: "Em vez de se obrigar o trabalhador a pedir uma dispensa, obriga-se o sindicato a ir buscar a adesão dos contribuintes, ou seja, em vez de se meter primeiro a mão no bolso dos outros, para conversar depois, conversa-se primeiro e recolhe-se o dinheiro depois". Para exprimir a indignação do redator, "meter" parece mais adequado do que um polido "colocar".

Caso semelhante pode ser observado no exemplo seguinte, extraído também de texto jornalístico: "Alguns motoristas estarão calmamente falando ao celular ou relaxando com uma música tranqüila. Outros, nervosos, vão botar a mão na buzina ou virar na contramão para fugir dali rapidinho". O verbo "botar" parece mais adequado para indicar uma ação impetuosa. Note que dificilmente se ouve alguém dizer que "colocou" a boca no trombone. Melhor, nesse caso, "pôr", "botar" ou "meter"...

No lugar de emitir uma opinião, há quem prefira fazer uma "colocação". Há os que, em vez de "dizer", preferem "colocar". Veja o trecho de uma recente transcrição de fita de vídeo: "É o estilo dele. Aí a gente vem, acerta, negocia, aí você coloca pra ele, fala "aqui tem o seu' [com as mãos como se fosse um maço de dinheiro], "aqui tem o do presidente'".

Há ainda outras situações nas quais o emprego do verbo "colocar" demonstra ter o termo adquirido grande abrangência de significados. Vejamos alguns fragmentos de textos publicados na imprensa: "O discurso de Condoleezza Rice traz novidades. Coloca como prioridade a democracia interna", ou seja, nesse discurso, a democracia "é tratada" como prioridade.

Em "A Keith Thomas coube colocar o problema de maneira mais feliz ao acentuar que não se pode rejeitar o marxismo em bloco", "colocar" adquire o sentido de "expor" ou "apresentar".

Em recente declaração de Marcos Valério, personagem hoje mais do que presente na mídia, ""Nunca falei com o ministro José Dirceu pelo meu celular. E nunca falava com o ministro diariamente como ela coloca. Isso se comprovará na hora em que algum órgão do governo quebrar o meu sigilo telefônico", "colocar" é empregado como verbo dicendi (ou declaratório), cujo significado é, simplesmente,"afirmar".

No trecho "A escrita vocal não coloca exigências excessivas sobre os cantores, que puderam se concentrar no trabalho teatral", "coloca sobre" vale por "impõe a".

No fragmento "O juro no Brasil é alto porque normalmente as pessoas honestas pagam pelas desonestas, ou seja, quando se vai calcular a taxa de juros no Brasil, coloca-se uma quantidade de pessoas que não vai pagar. É a coisa mais absurda do mundo", "colocar" é "considerar" ou "computar".

Em "É um grande país e incrivelmente rico em recursos naturais. A grande ameaça que a China coloca para o Brasil é a de desindustrializar o país, ao invés de industrializá-lo", "colocar" quer dizer "lançar" ou "dirigir".

Na declaração de Roberto Jefferson, "Acho que os ministros traíram a confiança do presidente. Como pode ministros minimizarem, dizendo que não havia importância em minhas palavras, e ter essa explosão no Brasil quando a Folha as coloca para a opinião pública?", "colocar" é "divulgar" ou "expor".

No trecho "O PT colocou uma condição: que a CPI se limite a investigar os Correios, e não o "mensalão'", "colocar" funciona como "impor".

No fragmento "Em resposta, o PFL colocou como titular da CPI o deputado Félix Mendonça (PFL-BA), 77", "colocar" tem o sentido de "escolher".

Observe, no trecho seguinte, a construção "colocar como", bastante comum: "Ela é o tipo da pessoa que carrega o estereótipo de má. E todos os dados sobre ela são terríveis, todo mundo a coloca como uma mulher ruim", aqui um sinônimo de "considerar".

Em "O Supremo Tribunal Federal aceitou pedido feito pelo procurador-geral da República para a abertura de inquérito contra o senhor presidente do Banco Central destinado a investigar "suspeitas sobre sonegação fiscal, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e crime eleitoral'. O fato coloca um problema bastante delicado para o governo", "colocar um problema" pode ser entendido como "ocasionar um problema".

Os exemplos se sucedem à larga. Às vezes, o verbo "colocar" aparece onde dificilmente seria visto. Observe este exemplo: "Além de dizer que falar na demissão da ministra é "um exagero de quem está querendo colocar cabelo em ovo', Ciro Gomes, sem citar nomes, atacou os setores que, para ele, buscam achar "escândalos' no governo Lula a partir desse caso", no qual a formulação "colocar cabelo em ovo", salvo engano, está no lugar de "procurar pêlo em ovo"...

Fica para o leitor, a título de sugestão, a tarefa de observar o uso um tanto excessivo que se vem fazendo do verbo "colocar" em situações em que seria possível lançar mão da vasta gama de palavras de que dispõe o nosso idioma.
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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