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Noutras Palavras

25/08/2005

A CPI e os eufemismos

THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online

A crise política que tomou conta do país, traduzida nas declarações de seus personagens, tem produzido grande quantidade de volteios semânticos cuja finalidade, todos sabemos, é tentar encobrir uma realidade pouco ou nada agradável.

Quem não observou com que insistência o tesoureiro Delúbio Soares recusou a denominação de "caixa dois" atribuída à movimentação paralela do dinheiro de seu partido? Cunhou a expressão "recursos não-contabilizados", repetida à exaustão. O fato é que a manobra lingüística foi tão evidente que acabou provocando o efeito contrário. A expressão soa irônica e o discurso que a toma com pretensa seriedade resvala no mais debochado cinismo.

Mesmo assim, a expressão continua sendo usada. Talvez a atenuação, produzindo um efeito de distanciamento, nos ajude a lidar com os fatos. A palavra proferida tem muita força e uma prova disso é o que sentimos quando ouvimos xingamentos ou palavras rudes. A língua tem usos afetivos por meio dos quais podemos ser doces ou amargos, ríspidos ou delicados, diretos ou indiretos.

Em estilística, o uso de expressões que buscam suavizar a realidade é o que se chama de eufemismo, palavra de origem grega que quer dizer "auspicioso", "de bom agouro".

Em recente declaração ao país, o presidente da República pediu desculpas pelos "erros" cometidos por seu partido. O erro pode ser um engano involuntário, fruto da distração ou de uma avaliação incorreta de uma situação --bem mais suave, portanto, que um crime ou um delito.

Na esteira dos "recursos não-contabilizados" e dos "erros", surge uma nova personagem: a "agenciadora de meninas de programa", mulher cuja respeitável atividade se resume a "organizar festas e oferecer recepcionistas selecionadas", como ela mesma afirma depois de declarar que detesta a palavra "cafetina".

Verdade seja dita: ela não é a única a ter aversão a essa palavra ou a seus sinônimos. Antigamente, o termo que denominava essa profissão (ou prestação de serviços) era "alcoviteira", palavra igualmente evitada e até mesmo substituída pelo substantivo composto "onze-letras", cuja origem está no número de letras da tal "palavra proibida".

Observe-se que o tratamento profissional ("agenciadora", "promotora de eventos" etc.) conferido à atividade parece legitimá-la. A expressão "meninas de programa", por sua vez, sugere alguma ingenuidade. O fato é que, apesar de todo esse profissionalismo, os clientes da tal cafetina preferem assumir que têm com ela uma relação de "amizade".

O princípio do eufemismo está dado: trata-se da atenuação de termos que evoquem tabus. Tudo o que é "proibido" recebe um novo nome. O próprio termo "mensalão" guarda certo ar brejeiro, jocoso, como se denominasse uma espécie de traquinagem. É uma corruptela (!) de "mesada" ou "mesadão". Evita-se, assim, o uso do termo próprio, que seria "suborno".

Verdade é que a crise estampou nas declarações de políticos alguns dos recursos de atenuação de que dispõe a língua. Mesmo os inquiridores lançam mão deles. Frases do tipo "Com todo o respeito, Vossa Excelência falta com a verdade" são exemplos disso. O uso reiterado dos pronomes de tratamento (até mesmo para tratar com os que não têm cargo no governo) confere formalidade à situação, o que, no caso, serve para garantir que os ânimos exaltados não levem a indelicadezas a que ninguém gostaria de assistir.
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora de "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom-AL) e colunista do caderno "Fovest" da Folha.

E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br

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